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Na linha de frente, com orgulho e profissionalismo

Formados pelo projeto TransGarçonne, da UFRJ, transgêneros deixam os 'trabalhos invisíveis' e conquistam os holofotes em salões estrelados da cidade

Por Cleo Guimarães
Atualizado em 20 ago 2021, 10h22 - Publicado em 20 ago 2021, 07h00

 

Rochelly Rangel, 35 anos: após perder vaga em multinacional por preconceito, a profissional fez o curso da UFRJ e foi admitida na equipe do Boleia Bar -
Rochelly Rangel, 35 anos: após perder vaga em multinacional por preconceito, a profissional fez o curso da UFRJ e foi admitida na equipe do Boleia Bar, onde “faz um trabalho brilhante e flutua no salão”, segundo sua chefe (Leo Lemos/Divulgação)

Aconteceu há uma década, mas Rochelly Rangel lembra como se fosse hoje, com todos os pormenores. Na fase final do processo de seleção para uma vaga numa multinacional, ela viu-se em uma disputa com apenas um candidato. Havia feito uma boa entrevista, estava confiante, mas, à espera do resultado, avistou dois funcionários do RH falando sobre o caso e ali viu suas chances ruírem. “Ela é boa, vamos contratar”, defendia um deles. E o outro respondeu: “Não é ela. É ele. Você não reparou? Não dá!”. O emprego escorregou pelas mãos pelo fato de ser quem é — um indivíduo transgênero. “Isso acontece todos os dias”, assegura Carlos Tufvesson, à frente da Coordenadoria da Diversidade Sexual da prefeitura. “Em um shopping, por exemplo, quantas vendedoras trans a gente vê? E faxineira? Secretária? Onde trabalham? Será que ninguém pensa nisso?”, cutuca.

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O caso de Rochelly, hoje com 35 anos, confirma a regra que um recente relatório divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) quantificou. Na pesquisa, 88% afirmaram acreditar que as empresas brasileiras não estão preparadas para contratar ou garantir a permanência de pessoas trans em seus quadros. Mas começam a espocar no horizonte sinais de que a maré está mudando, ainda que lentamente, na direção de uma sociedade menos preconceituosa. Um deles vem da UFRJ, que encabeça uma iniciativa sem precedente na cidade — um curso de extensão em gastronomia voltado para a qualificação de indivíduos trans interessados em trabalhar no setor.

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Mais do que um diploma, o certificado do projeto TransGarçonne, criado em 2020, é uma injeção de autoestima nos formandos e um passaporte para que deixem as sombras a que historicamente são relegados. “O mundo em geral é hostil com essas pessoas, mas as portas da nossa área estão se abrindo para elas”, comemora Fernando Blower, presidente do Sindicato de Bares e Restaurantes, um dos parceiros do programa, que mira a inclusão e a diversidade na gastronomia carioca, junto com Ministério Público do Trabalho.

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Recém-chegada ao salão do estrelado Lasai: em seu primeiro emprego de carteira assinada, Maya Catana, 23 anos, arrancou elogios do chef Rafa Costa e Silva -
Recém-chegada ao salão do estrelado Lasai: em seu primeiro emprego de carteira assinada, Maya Catana, 23 anos, arrancou elogios do chef Rafa Costa e Silva (Leo Lemos/Divulgação)

No Brasil, as poucas vagas que cabem a esse estrato da sociedade no mercado formal são, na imensa maioria, as dos chamados “empregos invisíveis” — aqueles em que não há contato visual com o cliente, como atendentes de telemarketing, estoquistas e ajudantes de cozinha. Felizmente, novos ventos sopram por aqui, bem-vindo mesmo que com atraso em relação a países como os Estados Unidos e a França, onde a busca por inclusão e diversidade é parte das metas globais de gigantes como IBM e L’Oréal.

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Pois os frutos do projeto da UFRJ já são colhidos em casas estreladas, entre elas o Lasai, ícone da comida contemporânea na cidade, onde se vê circulando entre as mesas a garçonete trans Maya Catana, 23 anos. Este é seu primeiro emprego “de carteira assinada” e ela o vem executando com maestria ante à exigente clientela e ao não menos rigoroso patrão, o chef Rafa Costa e Silva, um dos protagonistas do reality Mestre do Sabor. “Sou 100% elogios para ela”, derrama-se Rafa.

Geralmente, ainda hoje, em pleno século XXI, profissionais como Maya não conseguem ultrapassar a fase em que o RH das companhias exige deles a documentação necessária à admissão. “Sempre rodei nessa etapa”, lembra Rochelly, hoje em dia empregada, feliz e valorizada no Boleia Bar, em Botafogo, onde foi contratada depois de passar pelo TransGarçonne. “Ela é maravilhosa, imprescindível. Flutua no salão e trabalha como poucas”, elogia Lela Gomes, dona do negócio.

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O fato de ser um bar voltado para lésbicas, cuja inicial é a primeira das letrinhas que compõem a sigla da comunidade LGBTQIA+, não impede que, vez ou outra, Rochelly sinta na pele algum preconceito por parte da clientela. “É raro, mas acontece”, diz. “Feministas mais radicais, por exemplo, não me aceitam com facilidade.” Trata-se, no entanto, de uma exceção, segundo o grupo trans ouvido por VEJA RIO que hoje trabalha nos restaurantes da cidade. “Às vezes, se referem a mim como ele. Sinto, porém, que não é por maldade”, reflete Maya.

Os alunos do TransGarçonne: iniciativa sem precedente da UFRJ mira a qualificação de profissionais interessados em trabalhar no mercado da gastronomia
Os alunos do TransGarçonne: iniciativa sem precedente da UFRJ mira a qualificação de profissionais interessados em trabalhar no mercado da gastronomia (Cesar Galeão/Divulgação)

A julgar pela experiência em outros países e até em cidades brasileiras como São Paulo, que já conta com projetos para empregar pessoas trans em bares e restaurantes há pelo menos três anos, esse tipo de política precisa vir acrescida de um esforço prévio de conscientização e sensibilização de toda a equipe. E é aí que são apresentadas ao time um rol de atitudes básicas, mas necessárias por conjugar o verbo incluir em seu sentido mais amplo — o uso do pronome preferido (ele ou ela), do nome social escolhido e da utilização de banheiros de acordo com a identidade de gênero estão entre elas.

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Piadas, gracinhas e ironias são inaceitáveis e passíveis de demissão por justa causa. “É só respeitar e fazer com que essas pessoas se sintam queridas e acolhidas. Não estamos pedindo para reinventar a roda”, frisa Danni Camilo, gerente-geral da Casa Camolese, no Jardim Botânico. A casa atualmente emprega um não binário e uma trans, Afrodite Aurora, outra que chegou ao salão com o diploma do TransGarçonne. Afrodite foi indicada pelos coordenadores do curso, Renato Monteiro e Breno Cruz, que vêm criando uma rede de empregabilidade para esse público. “São mais frágeis, a maioria com pouca escolaridade e histórico de rejeição em casa”, diz Breno.

Carlos Tufvesson, à frente da Coordenadoria da Diversidade Sexual da prefeitura: parceria para estimular o empreendedorismo trans -
Carlos Tufvesson, à frente da Coordenadoria da Diversidade Sexual da prefeitura: parceria para estimular o empreendedorismo trans – (Guilherme Espíndola/Prefeitura do Rio de Janeiro)

Crescer e aparecer sob os holofotes dos salões da boa gastronomia carioca exigiu uma dose extra de resiliência dessas pessoas, inseridas num universo de preconceito e violência — desde 2008, o Brasil ocupa o vergonhoso posto de nação onde mais se mata pessoas trans no planeta. Hoje figurando orgulhosamente na equipe da hamburgueria vegana Vegan Ti, em Botafogo, Gabriella Martins, 27 anos, foi alvo em seu trabalho anterior, num quiosque da Praia de Copacabana, de tratamento cruel. Apesar de se identificar com o gênero feminino, seu chefe a escalava para os trabalhos braçais, como carregar pesados sacos de coco. A aparência também incomodava. “Falavam para mim: ‘Estou vendo barba no seu rosto, como você diz que é mulher?’. Era esse o nível”, rememora, sem saudades.

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Outras iniciativas pró-inclusão já despontam no cenário justamente para erradicar do mapa o bolor do preconceito. Está prevista para outubro a criação de um projeto para estimular o empreendedorismo trans, numa parceria da Coordenadoria da Diversidade com a Fecomércio. “Além de ter o seu emprego, essas pessoas também vão poder empregar”, entusiasma-se Carlos Tufvesson. E assim, passo a passo, a humanidade vai caminhando rumo a um mundo melhor e mais tolerante.

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