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Por que o Largo da Prainha tem dado o que falar

Destaque em roteiros internacionais, a histórica região se revigora e atrai gente de todas as tribos e nacionalidades

Por Carolina Barbosa e Pedro Landim
Atualizado em 21 fev 2022, 17h48 - Publicado em 18 fev 2022, 06h00
O centro do Largo: história e lazer
Largo de São Francisco da Prainha: música e muita história (Leo Lemos/Veja Rio)
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No meio da praça, de turbante, pés descalços e mãos na cintura, a estátua parece dançar ao som de samba, funk, jazz, chorinho e tantos outros ritmos da mais pura brasilidade que embalam a área quando o sol se põe atrás do Morro da Conceição, formando um belo cartão-postal. A homenageada na escultura é Mercedes Baptista (1921-2014), a primeira bailarina negra do Theatro Municipal e inventora do balé afro-bra­sileiro, que toma inspiração no candomblé. Se viva estivesse, naquela típica tarde abafada de verão, ela provavelmente puxaria a extensa mangueira de cor azul pendurada na porta de um sobrado colonial para se refrescar, como fizeram as duas moças de biquíni vindas direto da Praia do Leme, a 12 quilômetros dali.

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A cena é cada vez mais frequente sobre o chão de paralelepípedos neste naco da cidade, uma área de 600 metros quadrados encravada na região do Porto, onde no século XIX havia apenas areia e mar. Hoje, após sucessivos aterros, o local está inteiramente repaginado e ganhou novo — e infinito — fôlego, atraindo gente de toda parte. Bem-vindo ao Largo de São Francisco da Prainha, ou só Prainha, localizado no efervescente bairro da Saúde.

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Eleita no último ranking da Time Out Londres como uma das vizinhanças mais descoladas, ou cool, do planeta, ela abriga um monte de mesas ao ar livre às quais se sentam perfis bem distintos — amigos, casais e famílias de diferentes idades e procedências. A marca registrada deste ascendente pedaço do Rio é a informalidade: garrafas de cerveja cravadas em isopores de gelo e acepipes dos botecos instalados nas casinhas de fachada colorida dão o tom da animação. “Os visitantes vão descobrir bares charmosos, bela arquitetura portuguesa e locais fascinantes”, avisa a publicação britânica.

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Largo da Prainha: um universo de atrações (Fotos Leo Lemos, Tomas Rangel, Alexandre Macieira/Riotur)

Um deles é o Bafo da Prainha, um botequim bem raiz, a mola propulsora da retomada no largo histórico a apenas quatro minutos a pé da Praça Mauá. Inaugurada em março de 2021, no perío­do pandêmico mas obedecendo às boas normas sanitárias e beneficiada pelo espaço aberto, a casa transformou a paisagem desta praia sem areias em pleno Centro e já figura nos roteiros internacionais, ingressando no rol dos melhores bares do mundo abertos no ano passado, segundo a mesma Time Out.

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Localizado no burburinho da região onde o Rio começou a florescer e deu à luz o samba e o Carnaval, o pé-­sujo atrai o público com seu cupim assado na churrasqueira de latão, a macarronese (aquela clássica salada de macarrão, a preferida do cantor Jorge Aragão, que volta e meia aparece atrás do prato) e outros tantos ícones suburbanos que encantam turistas e locais. A eclé­ti­ca lista de visitantes que passaram por ali inclui nomes como o do designer de sapatos francês Christian Louboutin, o dos inconfundíveis calçados de solado vermelho, e a atriz espanhola Esther Acebo, a Estocolmo da série La Casa de Papel.

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Numa recente visita ao Rio, ela não economizou em posts do point em suas redes sociais. Criador do singelo estabelecimento e personagem central na revitalização da área, o produtor cultural e filósofo de formação Raphael Vidal, 39 anos, tenta manter a veia empreendedora em sintonia com a cultura e a história da cidade. “Temos a tradição de hospitalidade dos pés-sujos, que recebem do engravatado ao engraxate. A verdadeira startup carioca é a calçada do botequim”, define.

Ponto de encontro para Camila Lacerda (de branco) e amigos -
Ponto de encontro para Camila Lacerda (de branco) e amigos – (Leo Lemos/Divulgação)

Os holofotes lançados sobre o Bafo, como o reduto é chamado pela freguesia, despertou a atenção de outros que decidiram apostar neste agitado conjunto de ruas, unin­do-se aos investidores antigos do ponto. E assim emergiu um novo polo de lazer e da botecagem, desses fenômenos que de vez em quando se percebem em grandes cidades mundo afora. A veteranos como o Armazém Zero4, dos anos 1960, se somaram novidades como o Comezinho e o 021 (veja o quadro).

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Mesmo com os efeitos da pandemia, que freou a economia e representou um baque para o setor, os comerciantes da região são unânimes em afirmar que o faturamento dobrou. Até chegar ao ápice, um processo gradativo, o charmoso largo já vinha recebendo novos ventos, como a Casa Porto, um centro cultural que virou bar, dotado de janelões no melhor estilo camarote debruçados sobre a praça, do mesmo dono do Bafo da Prainha, Raphael Vidal. “Esta zona, antes perigosa e degradada, se transformou em um ponto turístico democrático, que é a cara do carioca. Adoro trazer as pessoas aqui”, conta a advogada Camila Lacerda, 36 anos, pernambucana que mora no Rio e dividia uma mesa interestadual com amigos da Paraíba e do Acre.

A chegada dos novatos negócios deu um gás a todos ao redor, que em saudável sacudida correram para oferecer mais serviços. É o caso do tradicional Angu do Gomes, desde 1955 na ativa, que passou a funcionar à noite, servindo o célebre carro-chefe à base de fubá que lhe dá o nome — um prato de origem africana consumido nestas paragens desde os primórdios, entre batuques e celebrações de escravos e alforriados. “Antes, eu não abria até tarde porque era perigoso, mas a presença dos vizinhos me encorajou. E digo mais: a região tem potencial para ser o futuro da gastronomia do Rio”, aposta Rigo Duarte, 40 anos, o atual dono e bisneto de Basílio Augusto, falecido sócio que tocou a casa nos últimos cinquenta anos. “Só vi tanta gente no Porto nas Olimpíadas de 2016”, garante o empresário. A Prainha é como um oásis em meio a uma área revitalizada justamente no período em que a cidade se preparava para os Jogos, mas ainda revela um abandono no entorno que precisa ser combatido, inclusive em prol da segurança.

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Nas noites de fim de semana, o trecho compreendido entre a Igreja de São Francisco da Prainha, na Rua Sacadura Cabral, e a célebre Pedra do Sal, separadas por 200 metros, recebe cerca de 2 000 pessoas. Nesse mesmo trajeto, por vezes ermo de dia, luzes esfuziantes e globos espelhados sobressaem, quando escurece, em sobrados convertidos em botecos e animados por DJs na Rua São Francisco da Prainha. Uma tarimbada dupla da botecagem carioca, Luiza Souza, 57 anos, e Leandro Amaral, 38, do premiado Da Gema, da Tijuca, foi parar lá pelos variados predicados do sítio histórico onde germina a boemia. É deles agora a cozinha do Da Pedra, ex-Bodega do Sal, que encerrou as atividades em 2020 no declive econômico da pandemia. “Eu me emociono quando piso nesse lugar”, diz Luiza, amiga desde os tempos de faculdade de seu outro sócio, André Peterson, 44, cuja família, lá se vai meio século, mantinha por ali uma pensão para marinheiros capitaneada por sua mãe.

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Era ele que estava à frente do antigo Bodega do Sal, agora rebatizado e renovado, com um painel trazendo uma imagem de Jesus Cristo negro e petiscos como o “pequena áfrica”, com espetinhos de linguiça e jiló envolvidos em bacon, cubos de frango e quiabo grelhados rodeando uma fumegante tigela de angu.

A cidade vem sendo palco, ao longo das décadas, do apogeu de certas áreas que andavam escanteadas. Foi assim com a Lapa, que, após o notável período boêmio e cultural até o início dos anos 1940, passou um bom tempo esquecida, retornando à cena no fim do século XX, com o surgimento de casas de samba que reviveram a tradicional agitação e arrastaram multidões de jovens e muitos turistas para o bairro. Mais recentemente, foi a vez de Botafogo ver ferver suas calçadas. “O Rio é uma cidade de rua, muito mais do que de casa”, ressalta o historiador Luiz Antonio Simas. “No caso do Porto, é uma região de confluência, com fácil acesso às zonas Sul e Norte, e de riquíssimo valor histórico. O Bafo explodiu e virou a joia da vitrine, mas o processo de ocupação vem de longe, e envolve os ensaios do bloco Escravos da Mauá, o surgimento do bar Trapiche Gamboa, a Pedra do Sal e os museus.” De fato, o local é há séculos de especial relevância para a cultura afro-carioca. No início do século XVII, um grupo de baianos aportou naquelas bandas, onde grandes sambistas como Donga, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres costumavam se reunir. Isso, não há dúvida, conspira a favor da cena cool, como definiu a Time Out britânica.

As turistas Rachel e Pauline, da França para a Prainha -
As turistas Rachel e Pauline, da França para a Prainha – (Leo Lemos/Divulgação)

A frequência costumava ser só de morador, mas o leque se abriu globalmente: agora tem alemão, francês, espanhol, sotaques do mundo todo. A maioria dos empreendimentos, porém, se mantém nas mãos de moradores da própria Saúde. “Isso nos fortalece, faz o dinheiro circular na região”, comemora Paulo Madureira, 42 anos, detrás do centenário balcão de madeira do Armazém Zero4, testemunha da época em que o avô abriu ali um armazém de secos e molhados, nos anos 1960.

O estabelecimento ocupa uma das esquinas no maior imóvel da praça, que abriga na parte de cima a Casa Porto e tem na outra ponta o Bar da Dulce, tocado pelo comerciante Miguel Fernandes Barbosa, 56 anos. “Estava tudo ao léu, largado, e o Bafo da Prainha acendeu as luzes. Agora, a guarda municipal aparece e a praça atrai famílias”, festeja Miguel. Uma especialidade local é a variada ocupação, como resume Sérgio Balthazar, sócio dos bares Gratto e Comezinho: “O público aqui é classe A, B e C”. Dona do Boteco 021, pequena loja de costura e guloseimas que virou um bar com mais de dez mesas na praça, Giselle Oliveira, 35 anos, corrobora: “Estamos na nova Lapa, um corredor de atrações ao ar livre”. Algo muito desejável, aliás, nestes tempos em que o novo coronavírus ainda circula entre nós.

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Com a procura se elevando, numa mistura de tribos que é a cara do Rio, pode-se dizer que o local se tornou a praia deste verão, apesar da distância das areias. Aos amigos que vêm de fora, a publicitária e habituée Juliana Goulart, 37 anos, à frente do perfil Vida Carioca, sugere programas combinados, começando, por exemplo, pelo Museu de Arte do Rio, o MAR, ou pelo Museu do Amanhã, traçado pelo arrojado espanhol Santiago Calatrava, e se estendendo até o Largo, sem deixar de tirar fotos pelo caminho tendo ao fundo coloridos murais. “É um lugar instigante, com vibração cultural e histórica, música boa e diversidade”, define Juliana.

Presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Zona Portuária, da prefeitura, Gustavo Guerrante atribui à infraestrutura implementada pelo projeto Porto Maravilha, que deu uma injeção de dinheiro e ânimo à região nos tempos pré-olímpicos, um dos motores para a volta por cima da Prainha. “Ver a efervescência ali é prova de que o Porto como um todo tem tudo para despontar”, pontua. Há no horizonte o plano de mais incentivos para este canto da cidade, o que inclui a construção de habitações para 12 000 pessoas até 2025 e a renovação da Orla Conde, com a vinda de quiosques.

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Para o específico perímetro da Prainha também estão previstas boas novas. Quem conta é Raphael Vidal, do Bafo da Prainha e atual diretor de gastronomia do Polo da Região Por­tuária, que não para. O bar quase ao lado ao Bafo se transformará no Pequeno Museu Carioca, de sua propriedade, e abrigará exposições com curadoria do fotógrafo Ierê Ferreira, que há anos registra as festas populares e os espaços de cultura ligados à história carioca. E outro imóvel vizinho será dedicado aos pães. A ideia é estender o bochicho ao café da manhã em parceria com o BoulangeRUA, uma pequena padaria que cultiva com criatividade a fermentação natural. Para este mês, aguarda-se ainda o Ginga, um boteco de frutos do mar, filial do recém-inaugurado quiosque no Leme.

A trilha sonora que embala o agito na Prainha é de alta qualidade: há bons shows aos domingos na sacada do Bafo, às 17 horas, em um estilo definido por Vidal como “serenatas ao avesso”, já que as atrações se acomodam no sobrado e o público assiste lá debaixo. “Aqui é um lugar onde o Moacyr Luz toca passando o chapéu, o prefeito aparece para um chope e a Teresa Cristina dá uma canja”, ele lista, com indisfarçável orgulho.

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Embrenhar-se pela região, deixada de lado pelas reformas urbanísticas do prefeito Pereira Passos, no início do século XX, é ainda desvelar uma riqueza histórica (veja algumas curiosidades no quadro). Contígua ao Largo da Prainha, a Pedra do Sal, onde se descarregavam o sal e outros itens, tornou-se um conhecido reduto de músicos negros, que entraram para a história como precursores do samba e dos ranchos carnavalescos. Foi o caso de Hilário Jovino, morador do Beco João Inácio e fundador, no fim do século XIX, do primeiro rancho de que se tem notícia: o Rei de Ouros, que apresentou à época novidades, como o conceito de enredo e o casal de mestre-sala e porta-ban­deira.

Pois é exatamente nesta viela épica que, aos domingos, entra em cena o musical a céu aberto Nosso Malandro, com sessões às 15 e às 18 horas. Sentadas nas cadeiras de praia que colorem a ladeira do beco, em parada estratégica para um par de gins-tônicas na Tendinha, recém-aber­ta nesta borbulhante região da cidade, as francesas Rachel Gambard, 27 anos, e Pauline Barril, 29, ficaram muito bem impressionadas com o que viram. “Todos falavam do Largo da Prainha e a energia é mesmo diferente de tudo, a melhor que sentimos no Rio. Daqui a pouco, eu até aprendo a sambar”, planeja Rachel, rindo de si mesma. Certamente, melhor lugar não há.

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