Escola de Artes do Parque Lage amplia fronteiras com cursos virtuais
A pandemia obrigou a prestigiada Escola de Artes Visuais do Parque Lage a cerrar as portas, mas não a parar. Hoje, as aulas on-line chegam a outros países
Como vai você, geração 2020? Dentro da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), que não só formou uma turma de artistas que marcaram os agitados anos 1980, mas ajudou a projetar internacionalmente muitos representantes da arte contemporânea brasileira ao longo de quase cinco décadas, a pergunta aponta para boas respostas.
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A primeira delas: a pandemia acabou levando os cerca de setenta professores a transpor os muros do palacete tombado pelo Iphan no Jardim Botânico e percorrer o inevitável caminho da internet, para onde as aulas migraram, ampliando os horizontes para muito além da tradicional clientela da Zona Sul. Atualmente, os cursos oferecidos pela tradicional instituição são frequentados por alunos de vinte estados brasileiros e dezenas de países.
A crise provocada pelo novo coronavírus ainda abriu uma trilha para jovens artistas de comunidades do Brasil todo, que passaram a receber até 600 reais mensais para desenvolver seus trabalhos, também no modo remoto, junto a prestigiados docentes.
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Nos cursos regulares há mestres como Anna Bella Geiger, Charles Watson, Fernando Cocchiarale e Iole de Freitas. “Foi uma grande mudança de perspectiva. Entendemos que havia possibilidade de resistir pelos meios digitais”, observa o curador Ulisses Carrilho.
Sem dúvida, a EAV, que nasceu em 1976 sob a direção de Rubens Gerchman, vive uma novíssima fase, sem jamais perder a essência que converteu o local num efervescente ícone da cidade. Afinal, a liberdade de expressão que desafiava o academicismo e a censura imposta pelo regime militar transformou o espaço em foco de resistência e em um celeiro de talentos que continuam brotando por lá, neste momento graças às facilidades das redes.
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Como aconteceu em todas as áreas, os desafios postos pela pandemia foram muitos e nada triviais. Os cerca de cinquenta cursos planejados para 2020 haviam começado uma semana antes da decretação do isolamento social, em 13 de março, e a única possibilidade de manter os 450 alunos na ativa era partir para as aulas remotas.
A instituição, no entanto, não dispunha de nenhuma plataforma on-line, e a maioria dos professores nunca havia usado tais ferramentas. “Felizmente, pudemos contar com a criatividade e o engajamento deles, enquanto a gente procurava soluções, implementava novos sistemas”, recorda Yole Mendonça, diretora da EAV, que assumira o cargo dois dias antes do fechamento da escola e sequer conhecia pessoalmente toda a equipe.
Toda essa transição se deu, é claro, com muita experimentação. Que o diga Bernardo Magina, que dava aulas práticas de pintura. “Resolvi acabar com esse curso e focar na importância do pensamento plástico para a materialização da obra”, explica ele, cuja turma de vinte alunos têm apenas quatro egressos do estado do Rio.
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Um dos que vêm de fora mora na Austrália e acorda às 4h30 para engatar na lição. Outra é Bruna Silva, de São Luís, que cursa artes na Universidade Federal do Maranhão e nunca pôs os pés no Rio: “Estudar aí seria impossível para mim. Soube dessa oportunidade pelo Instagram e consegui uma bolsa. A EAV está mudando minha vida”.
Nem todos os módulos puderam ser adaptados — o de modelo vivo, por exemplo, é um dos que só devem voltar no ano que vem —, mas não faltaram esforços para dominar as técnicas on-line e seguir em frente a toda. Iole de Freitas, que há 25 de seus 76 anos dá um curso regular em que analisa obras de cerca de vinte alunos, foi vanguarda: recorreu ao WhatsApp para receber as imagens dos trabalhos produzidos na véspera de cada encontro a distância.
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Assim tinha tempo de refletir e gravar suas observações num áudio de quarenta minutos enviado a todos, que também teciam seus comentários. “Arte a gente não ensina. A gente cutuca, impulsiona, estimula. E esse formato se mostrou muito produtivo. Os mais tímidos se sentiam mais à vontade para escrever sobre seus pensamentos estéticos”, conta a veterana mestre da instituição, por onde passaram alguns dos principais nomes da arte contemporânea brasileira (veja ao final).
Deu tão certo que as obras e as reflexões coletivas viraram um livro, Apostilas Pandêmicas, editado pelo grupo. “Mas é um material interno, só nosso, um exercício de resistência que não é público”, sublinha ela.
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Anna Bella Geiger, 88 anos, reconhecida como uma das artistas mais importantes do Brasil, e Fernando Cocchiarale, 70, crítico, curador e professor de filosofia da arte, também não se intimidaram. Acostumados a dar aulas presenciais em dupla, chegaram a se reunir paramentados com máscara e face shield para se ambientar à nova realidade acadêmica, em outubro passado.
Hoje, está cada qual no seu quadrado (ou em algum cômodo da casa) — ela no Flamengo e ele no bairro Peixoto. Contam com assessoria técnica de funcionários da escola e dividem seus conhecimentos com estudantes baseados até em Miami.
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“Tenho um prazer enorme em dar essa aula. Comecei com videoarte em 1974. Tinha de ficar com uma aparelhagem louquíssima e pesadíssima em casa. Mas agora os desafios tecnológicos são ainda mais difíceis, e não dá para abrir mão de uma ajuda operacional”, avalia Anna Bella.
Tanto esforço e dedicação permitiram que 250 alunos concluíssem o primeiro semestre de 2020, e a primeira grata surpresa dos diretores da EAV foi ver que, em julho passado, o mesmo número de pessoas se matriculou em doze cursos de inverno.
O momento pandêmico abriu as portas — ou as conexões virtuais — da escola, democratizando o acesso a tão valioso centro de ensino. Para o novo programa que remunera estudantes, foram 800 inscritos para quinze vagas, o que dá uma medida da alta demanda.
“Entendemos que o papel da instituição neste momento também é distribuir renda. Temos um entregador de iFood como aluno. E entregador com talento, com um trabalho fotográfico que lembra a pintura metafísica de Giorgio Morandi”, pontua o curador Carrilho, fazendo referência ao italiano conhecido por sua precisão ao pincelar naturezas mortas.
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O talentoso motoboy é Allan Weber, de 29 anos, morador da comunidade Cinco Bocas, na Zona Norte. Ele fazia bicos carregando equipamentos de diretores de arte e, com a pandemia, começou a entregar lanches, uma rotina que passou a retratar para os mais de 5 000 seguidores que contabiliza no Instagram.
“Nunca soube mexer em câmeras, não conheço as técnicas, esse bagulho de luz. Uso uma automática. E resolvi clicar meu dia a dia. Queria estudar numa instituição de arte para mostrar o que faço”, conta Weber, que iniciou os estudos remotos em maio na EAV — as aulas presenciais só retornam em 2022, com o avanço da imunização.
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O ensino virtual, que veio para ficar, será mantido. “Acho que o maior desafio agora é traduzir a dimensão da escola para os alunos de fora, os encontros em volta da piscina, a efervescência cultural ensina mais do que a aula em si”, reflete o professor de pintura Magina. A arte não para.
Alunos ilustres
Cinco artistas formados nas salas do Parque Lage
Daniel Senise (1955)
O pintor e gravador deixou a engenharia para ser aluno e, depois, professor da EAV. Em 1986, recebeu a medalha de ouro na 1ª Bienal Latino-Americana de Arte sobre Papel.
Márcia X. (1959-2005)
Ficou conhecida por instalações, vídeos e performances que misturavam temas como religião, pornografia e feminismo.
Beatriz Milhazes (1960)
Pintora, gravadora, colagista e um dos nomes mais importantes da arte contemporânea brasileira, com obras no acervo do MoMA e do Pompidou.
Ernesto Neto (1964)
Artista multimídia, passeia entre esculturas e instalações, e já teve trabalhos exibidos em Helsinque, em Londres e na Bienal de Veneza de 2001.
Adriana Varejão (1964)
Têm alcançado recordes de preço em casas de leilão internacionais e dá nome a um pavilhão dedicado ao seu trabalho no Instituto Inhotim (MG).