ClubHouse e as novas maneiras de se fazer música
Artistas de R&B e Pop, produtores e críticos musicais acreditam que o aplicativo pode facilitar o acesso ao cenário musical
“O auge, como de várias redes sociais que o precederam, já chegou. Mas, desta vez, sobra um senso de comunidade mais forte que ele”. É assim que Cammie, cantora de R&B e compositora, define o momento atual da rede social ClubHouse. Para a cantora, o fenômeno ClubHouse pode ser explicado por meio de uma analogia histórica com a Bauhaus, escola de arte vanguardista surgida na República de Weimar, Alemanha, no pós-Primeira Guerra Mundial.
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A Bauhaus, dentre outros aspectos, ficou conhecida pelo encontro, até então inédito, entre vários artistas de especialidades diferentes. “É o que o ClubHouse está fazendo com diversos nichos, seja da música, seja de outras áreas”, explica. “O ClubHouse é uma porta muito grande para os cenários artísticos atuais se juntarem. Por exemplo, alguém abre uma sala chamada R&B, as pessoas vão entrando e, quando você vê, já conheceu mais de vinte pessoas”, diz Cammie, complementando que, se fosse explicar a rede social para um leigo, diria que é “um Zoom em formato de áudio”.
“Hoje em dia é muito difícil as pessoas darem informação de graça! São muito egoístas nesse sentido. No ClubHouse, as pessoas se ajudam, criam sala pra falar de edição de obra, e é uma coisa que artista independente não sabe fazer.” Cammie exemplifica com uma história do produtor Pablo Bispo, que criou uma sala com o nome
Criando música do zero.
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De pronto, o convite: “preciso de quatro pessoas, quem quer fazer uma música agora?”. Cammie levantou a mão, despretensiosamente. “Nós ouvimos o beat que ele tinha trazido, cada um fez sua parte da música, cada um fez um verso. E você acredita que no final da ligação a gente já tinha uma música pronta? Duas semanas depois fomos para o estúdio e a música foi lançada”, lembra, referindo-se à música Bala na Bolsa, de Cammie, Lukinhas, Jenni Rocha, Nyna, Safi e Ruxell.
Pablo Bispo, produtor com mais de 7 bilhões de plays em 5 anos de trabalho com a música, é assertivo: “Todo meu trabalho se baseia nisso, dar visibilidade a novos núcleos de Brasil, para novas pessoas se sentirem representadas. Acredito que as coisas acontecem dessa forma, e a gente nunca sabe se o artista que está começando hoje pode estourar daqui a duas semanas”.
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O produtor – que é uma das forças motrizes por trás do sucesso de artistas como Pabllo Vittar, IZA, Luísa Sonza e Ludmilla – diz que a maioria das pessoas com as quais trabalhou começaram junto com ele. “Minha mentalidade sempre foi essa, alavancar artistas. É isso que eu gosto de fazer. Entender a mentalidade do artista e alavancar”.
Pablo conta que o artista pequeno, desconhecido do grande público, pensa que, se tivesse um feat. com um artista grande, reconhecido, teria a ascensão facilitada. “Mas já houve vários casos onde isso não aconteceu. É muito mais fácil pensar em uma cena e todo mundo se fortalecer junto do que esperar essa estrela”, diz Pablo.
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Gardênia, artista de R&B e Pop, também acredita que existe um diferencial da plataforma. “Não funciona como as outras. A gente só conversa por áudio, então as pessoas se interessam em te conhecer por aquilo que você diz. Se conectam com você de verdade, e não por uma foto bonita ou pela quantidade de seguidores que você tem, como em outras redes.”
Gardênia entrou no aplicativo na segunda semana e revela que, antes disso, não estava muito por dentro dos artistas atuais do cenário nacional. “Como sou comunicativa, acabei virando amiga de muitos artistas sem nem saber que eram artistas! Foi o caso de Cammie, Xamã, Felipe Ret e muitos outros, por conta dessa conexão direta que o app proporciona. Isso tem ajudado muito os artistas de todos os estilos, até produtores e empresários”.
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Para Túlio Ceci Villaça, crítico musical e dono do blog Sobre a Canção, a colaboração é fundamental. “A impressão que eu tenho hoje é que as redes sociais, em geral, permitem aos músicos um tipo de colaboração que não havia antes, porque são extraterritoriais”.
Segundo Villaça, a MPB, quando surge no final da década de 60, é formatada principalmente no Rio, por causa da ocorrência de festivais e da presença da Rádio Nacional. “Quem queria aparecer estava aqui. Logo depois, começaram a chegar levas de outros estados, como o movimento tropicalista, feito pela galera baiana. Todos se juntaram ao caldo cultural que estava acontecendo aqui, como o Clube da Esquina, ainda na década de 60 para 70. As pessoas vieram para o Rio e começaram as trocas culturais.”
De acordo com o crítico musical, no entanto, em todos os períodos o cruzamento entre os artistas só aconteceu porque todos se deslocaram para o Rio. Cenas regionais, por outro lado, não tinham condição de prosperar ou prosperavam muito pouco.
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“Em meados dos anos 90 para início de 2000 as coisas mudaram: a força econômica de São Paulo começou a aparecer e artistas deixaram de vir ao Rio. As telecomunicações permitem a descentralização, começa a haver possibilidade de mais trocas, mas ainda hoje as cenas regionais não são aquilo tudo”, explica.
Apesar de importante, a colaboração via redes, para Túlio, ainda não supriu a centralização econômica de São Paulo. “Ainda que o artista não tenha necessidade de estar em São Paulo para gravar, os que estão lá têm mais visibilidade. Hoje, é mais descentralizado, mas permanece a herança”, afirma, destacando que “o distanciamento acabou fazendo com que a aproximação digital se precipitasse”.
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Cammie acredita na popularização do R&B, com impulso do ClubHouse. “Vai trazer uma efervescência cultural para o cenário, que é debilitado. Esse tempo em que o ClubHouse passa nos holofotes é muito importante, porque o R&B vai aparecer muito, com as pessoas se juntando para ajudar os outros a crescerem”. Segundo ela, a playlist do R&B do Spotify, que estava com algo em torno de 8 000 curtidas, já se encontra com mais de 180 000 após essa colaboração mais intensa entre as pessoas.
A cantora faz uma ressalva: “Tem aquela questão de “valor de culto” versus “valor de exposição”, né?”, diz, referindo- se ao livro do filósofo Walter Benjamin A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. “À medida em que mais pessoas são aceitas no ClubHouse, o debate saudável pode ficar comprometido. Por outro lado, a experiência pode ser incrível para os artistas que não teriam, de outro modo, acesso às informações valiosas que ali estão”.
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Rodrigo Reichardt*, estudante de comunicação, sob supervisão dos professores da universidade e revisão de Veja Rio