As rotas etílicas despontam como opção turística no interior do Rio
As trilhas em torno do gim, da cerveja, da cachaça e até do vinho dão um gás a mais no turismo fluminense, que tem metas ousadas para o pós-pandemia
Meca dos rótulos mais desejados e bem pontuados pelas estrelas da enologia, a França atrai uma multidão de viajantes, ano após ano, em busca do pontilhado de vinícolas onde garimpam tesouros produzidos com o terroir local. Regiões inteiras do país têm no enoturismo sua mais vistosa atividade econômica — os passeios que aliam belas paisagens francesas à experimentação etílica faturam altas cifras, algo em torno de 5,2 bilhões de euros por ano (31,4 bilhões de reais). O Brasil ainda está distante de tal patamar, mas começam a ganhar espaço por aqui, em pleno interior fluminense, rotas impulsionadas pela aspiração de bebericar boas taças (ou tulipas) — e relaxar.
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A pandemia, que freou as viagens internacionais, acabou sendo o motor de um movimento recorde por esses caminhos Rio adentro. Em julho, a média de ocupação na rede hoteleira nesse tipo de destino ficou acima dos 60%, com picos em Petrópolis (75%) e no Vale do Café (70%). “Em nenhum outro lugar do país se encontram, em um raio tão curto de distância, tantas opções turísticas etílicas — das tradicionais cachaças e cervejas aos gins e vinhos, que ganharam força”, diz o secretário de Estado de Turismo, Gustavo Tutuca.
O cardápio de endereços é vasto, cheio de novidades não muito longe da capital e desperta o interesse de gente à procura de um programa que envolva história, um dedo de prosa e (por que não?) degustação alcoólica. Com 24 atrações espalhadas por cinco cidades da Serra Fluminense, a Rota Cervejeira concentra redutos que vão desde a gigante Bohemia até a artesanal Cervejaria Colonus, em Petrópolis, já idealizada para receber visitantes. “Começamos a fazer harmonizações com produtos elaborados a partir dos ingredientes da cerveja. Em meio às explicações dos processos, servimos nossa german pils, que exibe características marcantes de malte e notas que remetem a bolacha, com uma ciabatta feita de bagaço de cevada”, explica o sócio Leandro Leal.
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A cerca de 35 minutos dali, em Corrêas, a Brassaria Matriz, encravada defronte a uma bela cachoeira, conhecida como Poço do Imperador, onde a família imperial costumava se reunir em convescotes no verão, também se tornou um refúgio da turma que aprecia os rótulos artesanais. Nos fins de semana, a casa costuma lotar trinta minutos após a abertura — e a fila de espera chega a duas horas.
A ideia ali é que a produção mensal (em torno de 1 500 litros) de sete variedades, entre a amarguinha new england ipa com cupuaçu e a ácida gose com goiaba e maracujá, seja consumida in loco. “Essa proposta tem sido tão bem recebida que, desde que retomamos as atividades, o público triplicou”, comemora o sócio e cervejeiro Pedro Lito.
O caminho cervejeiro, já mais estabelecido, encontra um forte e promissor concorrente, que desponta no cenário fluminense: o gim. Sem sinalização e com acesso por uma curta estradinha de terra para quem sai da Via Dutra em direção a São Paulo, na altura de Barra Mansa, no Vale do Paraíba, uma fazenda do século XVIII abriga a destilaria do Amázzoni, condecorado com o Distiller of the Year no World Gin Awards 2021, espécie de Oscar do setor.
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Os visitantes são recebidos em pequenos grupos para uma experiência intimista, que perpassa desde a rica história do local, antiga sede da fabricação de cana-de-açúcar e café, até uma imersão pelos princípios da elaboração artesanal da bebida, preparada em alambiques de cobre, que emanam seus complexos aromas. Tudo, como não podia deixar de ser, regado a gim-tônica e coroado com um saboroso almoço. “No início da pandemia, não tínhamos nada muito bem estruturado, mas aprimoramos o atendimento, implementamos serviço de helicóptero e o crescimento foi exponencial”, conta, entusiasmado, o sócio Arturo Isola.
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Ele e outros que apostam nas rotas etílicas sabem que são precursores em uma cultura que está começando a germinar nestas praias. “Em um mercado tão pouco educado para esse tipo de bebida, abrir a destilaria vale mais do que qualquer propaganda, é a nossa casa. Poder ver o que está por trás do rótulo torna o consumo uma experiência única”, diz Isola, que produz 3 000 garrafas por dia. Ainda nessa seara, a destilaria Alquimia, em Itaboraí, responsável pela fabricação dos gins Mutatis e Galaxy e de um rótulo de rum, está ampliando suas instalações para, até o fim do ano, estrear para o público. Investe também em um bar para degustação e área para churrasco. “É a cara do carioca”, acredita o sócio Flávio Lima.
Com 64 produtores cadastrados, a rota em torno da popular cachaça reúne propriedades localizadas de norte a sul do mapa fluminense. Marchetados na Costa Verde estão alguns dos alambiques mais antigos do país — caso do Coqueiro, com mais de dois séculos de serviços prestados aos apreciadores de uma branquinha de qualidade. “A pandemia nos deu a chance de nos reinventar, sem perder a essência. Queremos cada vez mais inserir a cachaça no turismo de experiência”, explica Eduardo Calegario Mello, sócio do primeiro alambique de Paraty com certificação orgânica.
Na propriedade, bebericam-se, além da receita clássica, amostras envelhecidas e a azulada, que fica com tal tonalidade graças à mistura com folhas de tangerina. Já na região do Vale do Café, no sul fluminense, municípios como Valença, Vassouras e Rio das Flores abrigam engenhos à frente de marcas premiadas, além de surpresas recém-chegadas — a Pindorama é uma delas.
Foi concebida em um alambique histórico, datado do século XIX, no município de Engenheiro Paulo de Frontin, todo restaurado para alojar a produção e receber turistas. “Mostramos ao vivo para as pessoas o que fazemos, levamos para o mundo e é tão valorizado em outras culturas”, diz o sócio Rafael D’Aló.
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Até o que, à primeira vista, poderia parecer improvável, dado o nosso terroir, encontrou terreno fértil em Paraíba do Sul, próximo a Secretário. Por lá está fincada a pioneira Vinícola Inconfidência, que passou por muita tentativa e erro para colher a primeira safra, em 2013, graças à técnica da dupla poda (que consiste em “enganar” a videira para que frutifique e a colheita seja no inverno). Uma adaptação aqui, outra ali, e voilà: hoje há 22 000 parreiras plantadas em 6 hectares de variedades tintas, como syrah, cabernet franc, cabernet sauvignon e merlot, e brancas, como sauvignon blanc e viognier.
Temporariamente interrompida em decorrência da pandemia, a visita guiada será em breve retomada, com o avanço da vacinação. “Nas redes sociais, estamos levando até bronca das pessoas, que questionam quando, afinal, reabriremos”, diverte-se o sócio Maurício Bittencourt Aranha. Nos planos está a construção de uma área de degustação no terreno das uvas, com gramado para piquenique e lojinha. “Vamos fazer bons vinhos e colocar o Rio na rota nacional”, promete.
Tomando inspiração no pioneirismo deles, há ao menos uma dezena de pequenos projetos no entorno. Em Areal, numa propriedade de 450 000 metros quadrados, está sendo erguido o Borgo del Vino, espécie de condomínio-vinícola que deve ser totalmente concluído em 2024. Com ares de vila medieval à la Toscana, a proposta, posta de pé com investimento de cerca de 40 milhões de reais, é reunir capela, restaurante, hotel-butique, spa, praça e torre com sino, além de área residencial e da vinícola Família Eloy, cuja visitação está prevista para meados do próximo ano. “Nem todo mundo pode ir ao Sul ou ao exterior, mas vai subir a serra e ter uma experiência agradável à altura”, garante Bernardo Eloy, um dos donos.
Tais inovações são vitais para empurrar o turismo, motor da economia fluminense essencial na retomada pós-pandemia. “Temos uma meta ousada de que 5% do PIB do estado seja oriundo do setor em um prazo de uma década”, afirma o secretário Tutuca, lembrando que a atividade responde hoje por cerca de 3% do bolo. “Essas rotas são muito importantes para nos ajudar a alcançar o objetivo”, avalia. Taí um bom motivo para brindar.
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