Nos últimos anos, estamos assistindo uma maciça campanha global de legalização da cannabis, travestida de uma pseudo modernidade, como se a proibição da droga fosse um resquício de autoritarismo do Estado sobre o livre-arbítrio do indivíduo. A Alemanha acaba de legalizar o porte e o cultivo de maconha para consumo próprio. Por aqui, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) estão envolvidos em discussão semelhante. Ninguém arriscaria negar que ela oferece prazer, caso contrário não seria tão consumida. O que pouco se pergunta é: afinal, por que a droga é proibida? A resposta mais simples: a maconha é proibida porque ela está diretamente associada a danos à saúde mental, como esquizofrenia, transtorno bipolar, transtornos ansiosos. No entanto, é mais raro se abordar os malefícios que a droga traz à saúde física.
Isso acaba de acontecer em estudo publicado no prestigiado JAHA (Journal of the American Heart Association), que apontou a associação do uso de cannabis com ocorrências cardiovasculares na população adulta norte-americana. De acordo com a pesquisa, houve um aumento de 25% nas chances de infarto do miocárdio entre adultos que usavam cannabis diariamente em comparação com não-usuários. Os resultados foram semelhantes entre adultos que nunca fumaram cigarro de tabaco. Os pesquisadores investigaram se a interação entre o uso atual de cannabis e o uso atual de cigarros de tabaco era significativa para esses resultados. A conclusão é que não havia relação já que cerca de 60% dos fumantes de maconha não eram fumantes de tabaco.
Esta evidência é reforçada pela descoberta de uma associação entre o consumo de cannabis e os resultados cardiovasculares naqueles que nunca tinham consumido cigarros de tabaco. Outro dado relevante é que na análise do grupo de pessoas que nunca fumaram cigarros de tabaco e cigarros eletrónicos, o consumo de cannabis teve uma forte associação com AVC (Acidente Vascular Cerebral) – até 2,2 vezes maior – doença coronariana e infarte do miocárdio.
Numa análise dos entrevistados jovens adultos com risco de doença cardiovascular prematura, o consumo de cannabis foi significativamente associado a doença arterial coronariana, infarto do miocárdio, acidente vascular encefálico e a combinação das três condições.
As informações publicadas pelao JAHA são fundamentais, especialmente em um momento em que o uso de cannabis está aumentando na população americana. De 2002 a 2019, a prevalência do uso da droga em adultos nos EUA praticamente dobrou: aumentou de 10,4% para 18,0%. Já o uso diário ou quase diário (mais de 300 dias por ano) triplicou: saltou de 1,3% para 3,9%.
Talvez pelas agressivas campanhas de marketing que tentam vender o caráter recreativo e pouco danoso da droga, a percepção da nocividade da cannabis está diminuindo. Dentre os adultos entrevistados: o entendimento de que o consumo semanal de cannabis acarreta um alto risco à saúde caiu de 50% em 2002 para 28,6% em 2019.
As implicações à saúde cardiovascular, agora publicadas, posicionam a cannabis lado a lado do cigarro tradicional como um fator de risco grave ao usuário. Fica a esperança de que a informação sirva de alerta àqueles que gostam de apregoar – bem ou mau intencionados – que a maconha faz menos mal à saúde, numa perversa escala de gradação de danos de algo que é e deve permanecer proibido, sem ceder ao hype “modernoso”, pelo bem da saúde pública.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.