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As marcas do racismo na história de mulheres de diferentes gerações

Nomes como Gloria Maria, Taís Araujo, Alcione, Luana Génot relatam como o problema persiste, por vezes escamoteado, no Rio de Janeiro deste século XXI

Por Pedro Tinoco
Atualizado em 17 jul 2020, 21h06 - Publicado em 17 jul 2020, 06h00

A bandeira antirracismo ganhou impulso recente com um vídeo aterrador que rodou o mundo. No flagrante feito por celular em 25 de maio, na cidade americana de Minneapolis, George Floyd, negro, morreu suplicando pela vida após ser sufocado por oito minutos e 46 segundos, tendo o pescoço sob o joelho de um policial branco. Manifestações de revolta ocuparam as ruas nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, onde os protestos foram insuflados pela indignação com a morte dos meninos João Pedro, 14 anos (uma semana antes, em São Gonçalo, durante operação policial), e Miguel, 5 (uma semana depois, no Recife, vítima de negligência).

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Estamos em julho e o pior já passou, certo? Nada disso: a fissura do racismo vem esgarçando o tecido social desde os primórdios de nossa história e persiste como uma ferida doída em quem foi e é alvo dele. “Já senti na pele, meu colega, as pessoas não têm noção”, diz a maranhense Alcione, 72 anos. A cantora e outras mulheres negras de todas as gerações – as maiores vítimas dessa chaga – compartilharam corajosa e generosamente suas experiências nesta reportagem, para apontar o preconceito que mora ali, ou aqui, em pleno Rio de Janeiro.

Alcione: Já senti na pele, meu colega, as pessoas não têm noção.” (Miro/Divulgação)

As estatísticas são implacáveis: as mulheres negras ganham os menores salários e costumam ser submetidas a humilhações que ninguém mais conhece. São as maiores vítimas de feminicídio e choram com mais frequência a morte violenta de seus filhos e maridos. Muitas, porém, superam, não sem sacrifício e dor, os obstáculos impostos pela cor da pele. Suas histórias ajudam a dimensionar esse mal que, para ser vencido, antes de tudo precisa ser reconhecido – o que nem sempre é. “O racismo é tão impregnado na sociedade que ele se apresenta uma hora ou outra, independentemente da sua classe social, de você ser uma pessoa pública ou não”, afirma, com conhecimento de causa, a atriz Taís Araujo, 41 anos, uma das que dão voz ao problema, que se anuncia, não raro, de forma disfarçada.

Depois de entrar em barulhenta rota de colisão com o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo (aquele que se referiu ao movimento negro como “escória maldita”), Alcione foi apoiada em peso pela classe artística e segue atenta à segregação que já a atingiu em cheio. Em plena pandemia, a intérprete celebra o 42º disco, enquanto acompanha a produção de documentário e musical em sua homenagem.

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Mesmo assim, ainda perde a calma ao lembrar a vez em que, há décadas, ouviu em alto e bom som “chegou o navio negreiro”, quando entrava em um hotel carioca. “Eu tinha vindo de Paris, estava com um guarda-roupa bonito, orgulhosa, e fui ao hotel para uma convenção da gravadora. Quando escutei aquilo, respondi pro cara umas coisas que não posso te contar agora, e o gerente sumiu com ele rapidinho, porque eu já estava com um cinzeiro na mão para tacar na cara do sujeito”, conta Marrom (apelido de que gosta).

“Isso é crime”, deixa claro. Um triste incidente marcado na memória da jornalista Gloria Maria, um dos nomes mais conhecidos do jornalismo na TV brasileira, também aconteceu à porta de um hotel. Barrada por um gerente racista, ela orgulha-se de ter sacado da gaveta a Lei Afonso Arinos, de 1951, que tipificava como contravenção penal manifestações de preconceito de raça ou cor. “Faz mais de trinta anos, o gerente era um americano, foi processado, acabou expulso do país. Mas não sei se melhoramos muito desde então”, alerta Gloria que, sim, entrou naquele hotel.

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Gloria Maria: “O racismo não dói na pele, dói na alma” (Ricardo Borges/Folhapress)

Episódios dessa natureza atravessam gerações e mostram que o caminho para extirpar o preconceito ainda é longo. Em maio deste ano – só para lembrar, século XXI -, vieram a público mensagens de cunho racista, rasteiro, trocadas via WhatsApp por alunos do Colégio Liceu Franco-Brasileiro.

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O alvo era uma colega de turma, a carioca Ndeye Fatou Ndiaye, 15 anos, filha dos senegaleses Mamour Sop Ndiaye, engenheiro e professor universitário, e Sokhna Ndiaye, dona da loja de roupas África Arte. “Por ser negra, praticamente a única na minha série, convivia com o racismo diariamente e recebi ataques escancarados duas ou três vezes. Não fiquei triste desta vez, mas indignada. Estamos em 2020, esses diálogos não deveriam estar acontecendo”, desabafa Fatou, já de escola nova, esbanjando a dignidade que falta a seus detratores. Pelas redes sociais, ela recebeu a solidariedade de figuras públicas, como a cantora Iza, a jornalista Maju Coutinho e Taís Araujo.

Fatou Ndiaye: “Não fiquei triste, fiquei indignada. Estamos em 2020, esses diálogos não deveriam estar acontecendo.” (Acervo pessoal/Reprodução)

Lembrada com frequência como a primeira protagonista negra de uma novela global (Da Cor do Pecado, em 2004) e, depois, de uma trama das 8 (Viver a Vida, em 2009), Taís se reconhece privilegiada, mas observa que isso não a impediu de experimentar dissabores ao se tornar alvo de mensagens racistas disparadas na internet. “Tive criação confortável, bons colégios e, hoje, com situação econômica estável, me livro de muita coisa, mas não há escapatória. Tenho uma história de exceção, mas o racismo não é exceção na minha história”, explica.

Ela conta que a iniciativa de confortar a jovem Fatou foi imediata. “Quando falei com ela, o caso ainda não havia se tornado público. O barulho que veio depois foi importante. É bom que a gente discuta como as escolas lidam com a questão, é importante que esses espaços se entendam como ambientes antirracistas”, avalia a atriz. “Carta de repúdio não dá mais conta da situação.”

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A novíssima pesquisa As Faces do Racismo, feita pelo Instituto Locomotiva para a Central Única das Favelas, delineia o panorama indigno no qual se inserem enredos como o encarado por Fatou. O trabalho foi realizado nos dias 4 e 5 de junho em todo o território brasileiro. Hoje, 56% da população -118,9 milhões de pessoas – se declara negra (pretos e pardos, na categorização do IBGE).

Essa multidão vive sob a ameaça da incivilidade, como demonstram duas situações de racismo pinçadas no levantamento: é negra a maioria que relata ter sido seguida por seguranças em lojas e que, por medo de ser confundida com assaltantes, conta já ter desistido de usar determinado tipo de roupa, acessório ou penteado.

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Com gráficos e dados sólidos, a pesquisa atualiza características dessa iniquidade histórica e vai além – mostra como a situação é pior quando são mulheres negras em foco. Entre profissionais de nível universitário, por exemplo, elas ganham, em média, 39% menos do que homens com a mesma cor de pele e 32% menos do que mulheres brancas.

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A discriminação, que uns não enxergam, muitos sentem no dia a dia, com todas as suas nuances. Antes de cursar publicidade, Luana Génot, 31 anos, foi modelo. Exerceu as duas atividades no exterior. “Vivenciei diferentes faces do racismo nos lugares por onde passei”, conta. Nos trabalhos de moda na França, na Inglaterra e na África do Sul, suas possibilidades foram limitadas pelo tom da pele. “Não podia fazer campanha no papel de uma mãe ou de uma mulher com dor de cabeça, só me cabiam tipos estereotipados de africana, de favelada”, lembra.

Luana Génot: Ainda há muito ativismo de sofá, muita hashtag e pouca prática.” (André VAlentim/Divulgação)

Nos Estados Unidos, onde realizou parte dos estudos universitários, esbarrou com a falta de representatividade que viria a encontrar na volta ao Rio. “Na Universidade de Wisconsin, discutíamos a ausência de professores negros. Aqui no Rio, consegui trabalho no marketing de uma multinacional. Não havia nenhuma mulher negra além de mim, o que me dava certeza de que meus talentos seriam subvalorizados”, diz.

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É um avanço notável ver que o assunto começa a ser posto à mesa sem meias-palavras. “As pessoas pretas não acordam e vão pesquisar problemas no Google. O racismo bate na nossa porta, não importa onde estejamos”, reforça a atriz Luana Xavier, 32 anos. Ela gravou, com Fernanda Paes Leme, o programa Viagem a Qualquer Custo, exibido este ano no canal GNT. Na primeira temporada, as duas circularam por Argentina, Chile, Cuba, México e Peru. Diante das câmeras, muito sorriso e cenários de encher os olhos. Longe delas, o de sempre.

“Lá fora passei por algumas situações de constrangimento real, práticas racistas, e o jeito era chorar no quarto do hotel.” Na volta, feliz por estar chegando em casa, uma surpresa ainda a aguardava no aeroporto. “Estávamos eu e meus colegas queridos, uma equipe branca, com uma montanha de equipamentos, e o agente apontou para mim, já me escolhendo para a fiscalização da bagagem”, conta Luana, quase enfastiada com a familiaridade óbvia da cena.

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Luana Xavier: “As pessoas pretas não acordam e vão pesquisar problemas no Google, o racismo bate na nossa porta, não importa onde estejamos.” (Silvio Almeida/Divulgação)

Assim como Alcione e Gloria Maria, mulheres negras da nova geração se recusam a sofrer caladas e cada qual encontra uma maneira de empunhar sua bandeira. Luana Génot, a ex-modelo que cansou das campanhas “afro de mentirinha” e não encontrou seu lugar como publicitária, tornou-se empresária e ativista social. Fundou, em 2016, o Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), organização dedicada à promoção da igualdade racial no mercado de trabalho. Há um ano, lançou o livro Sim à Igualdade Racial — Raça e Mercado de Trabalho, em que apresenta depoimentos de pessoas de ramos e etnias diversos para contar como a questão racial se liga à vida profissional.

A xará Luana Xavier brilha no Instagram, onde quase 200 000 seguidores acompanham seus posts sobre cultura negra e outros temas, enquanto ela prepara a websérie Redondamente Enganadas. Na produção, compõe o trio de protagonistas negras com a atriz Cacau Protásio e Maíra Azevedo, conhecida youtuber e conselheira sentimental no programa Encontro, de Fátima Bernardes.

As redes sociais, que ecoam todo tipo de causa, boa ou ruim, viraram uma vasta arena para a batalha contra o preconceito. Também no Instagram, a jovem Fatou anda fazendo bonito em vídeos com ensinamentos sobre a África – “As escolas não abordam a cultura do continente e a mídia, em geral, trata o assunto de maneira folclórica”, opina, amadurecida pela experiência.

Nas lives que batizou de Quintas com Fatou, ela já travou ótimas conversas com a campeã do BBB Thelma Assis e com Taís Araujo. Alcione segue adepta do estilo “bateu, levou”. No começo de junho, indignada com as afirmações desconcertantes do presidente da Fundação Palmares, a artista manifestou, durante a concorrida live da cantora Teresa Cristina, o desejo de presentear o dirigente do governo federal com bons catiripapos. Dias depois, Alcione saiu em defesa da cantora Ludmilla, vítima de ataques racistas nas redes. “Mexeu com ela, mexeu com outra mulher preta: Eu!”, avisou em post.

O debate hoje disseminado nas redes sociais é, como se sabe, antigo – surpresa mesmo é que ainda seja tão necessário. Maioria entre as vítimas de feminicídio registradas em 2018, segundo dados reunidos no último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as mulheres negras são mais ameaçadas a cada dia que passa. De acordo com o Atlas da Violência, em edição publicada há dois anos, o crescimento no número de homicídios femininos entre 2006 e 2016 foi de 6,4%.

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A média não traduz a realidade: enquanto a taxa de vítimas não negras encolhia 8%, as mortes de mulheres pretas e pardas saltavam 15%. “Para enfrentar o racismo, só com muita briga. O essencial é canalizar a raiva para propor ações”, ensina Rosalia Lemos, doutora em política social pela Universidade Federal Fluminense e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros no Instituto Federal do Rio de Janeiro. Militante da causa há quatro décadas, a professora Rosalia pontua um avanço: “Quando entrei na UFF, os negros nos cursos superiores eram 2,8%. Hoje dizem que somos maioria nas universidades públicas”.

O preconceito vem de longe, assim como a resistência, e acompanha a árvore genealógica das mulheres que ilustram esta reportagem. “Não aprendi sobre racismo em livro, aprendi com minha família, com minha avó, que morreu aos 104 anos e não virou escrava porque foi salva pela Lei do Ventre Livre. Ele não dói na pele, dói na alma”, define Gloria Maria. “É uma guerra. Nossas armas são a cultura, a educação, a sensibilidade. Vou seguir enfrentando a batalha, pelas minhas duas filhas”, afirma a jornalista. Luana Xavier é neta de Chica Xavier, “a grande atriz negra” Chica Xavier, como costumam se referir à artista cuja trajetória se confunde com a da TV brasileira.

Luana aponta o erro no epíteto aparentemente elogioso. “Ninguém chama a Fernanda Montenegro de ‘a grande atriz branca Fernanda Montenegro. Isso é o racismo entranhado na nossa vida”, argumenta. Apesar de todos os protestos recentes, Taís Araujo pondera: “Sou um pouco cética, acho que a comoção atual vai arrefecer, mas uma parcela da sociedade terá sido tocada. É preciso olhar em volta, ver se há negros nos espaços que você frequenta, que papéis desempenham e por que estão ou não ali”, ela observa.

Impressiona como a estudante Fatou se expressa sobre a violência que experimentou – e sua disposição para depreender daí algo de bom. “Nas entrevistas para a TV, na visibilidade que ganhei nas redes, eu não sou só a Fatou, sou uma representante dos jovens negros que passam pelo que passei todos os dias”, conclui. À frente do ID_BR, Luana Génot festeja o aumento na demanda por treinamentos sobre igualdade racial- só na primeira semana de junho, a procura foi a mesma de todo o mês anterior. Um sinal positivo, não há dúvida, mas a estrada se promete longa. “Ainda há muito ativismo de sofá, muita hashtag e pouca prática”, provoca a empresária. Meninas (e meninos), à luta.

(Anuário Brasileiro de Segurança Pública/Reprodução)
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