Esquinas do Esporte Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Futebol no Aterro: nova agenda para revigorar tradição de diversidade

Com o apoio do Museu da Pelada, programação inclui mulheres, comunidade LGBTQIAP+ e garçons, cujos jogos viraram patrimônio da madrugada carioca

Por Alexandre_Carauta Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
13 jul 2023, 09h54
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  • Formam uma goiabada com queijo. O Maraca emana o lirismo dos dribles desconcertantes, a poesia dos gols antológicos, a apoteose das glórias e tragédias rodrigueanas. O Aterro irradia a prosa do futebol sem verniz, a despretensão fumegante dos craques anônimos, a forra dos pernas-de-pau.

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    Maracanã é arquibancada. A explosão de vozes, cores, batuques, a dança das bandeiras, os louvores teatrais, as vaias colossais, a lâmina sonora das provocações que perfuram o concreto e alcançam a alma com a ressonância de um canto gregoriano.

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    Aterro é alambrado. O olho no olho, o bate-pronto das cornetadas rasteiras, o braço do povo, a execração ou a consagração em carne viva, o dedilhado frenético dos peladeiros e suas histórias de pescador, a fusão entre campo e calçada, como se replicasse a aura profana e o magnetismo da pororoca artística legada pelo imortal Zé Celso.

    Aterro é raiz da raiz, mistura da mistura. Transpira pluralidades, sociabilidades, contradições entrelaçadas pela fome de bola. Síntese brasileira, emblemático encontro do Centro com a Zona Sul, o espaço modernista inaugurado em 1965 consuma-se parque na veia.

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    Ali constitui-se um tropicalismo de chuteiras. Uma aquarela ao mesmo tempo libertária e perpetuadora de rituais futebolísticos. Um sopro da efêmera redenção carnavalesca: naqueles campinhos do Parque do Flamengo, garçons, porteiros, executivos, estudantes se equalizam e viram reis do pedaço aclamados pelas esquinas.

    Naquelas quadras icônicas batizadas por Nilton Santos e Castilho, campeões do mundo em 1958, a diversão corre descalça, brejeira, recíproca. Acima da identidade peladeira, atores e plateia compartilham o desejo de suavizar a rotina urbana.

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    Ali as peladas configuram, há mais de meio século, o que o antropólogo Arlei Damo chama de bricolagem. Refere-se aos ambientes que reproduzem princípios e comportamentos profissionais sem perderem a natureza amadora. Dimensões como a da várzea, rima perfeita entre a pompa e a fantasia.

    As bricolagens do Aterro flutuam a dois passos da várzea. Dispensam as aparências. Cortejam a anarquia. Nem por isso deixam de impulsionar, ano a ano, inscrições irreversíveis no universo do futebol. Nenhuma escola revela-se mais pedagógica do que aquelas quadras de soçaite florescidas de terrenos baldios.

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    Não há grama sintética, uniforme patrocinado ou tênis grifado que corrompa sua genética popular e lúdica, idealizada pela urbanista Lota Soares na década de 1950. Ali a elitização dos estádios não se cria.

    Nascido para o lazer público, o parque merece uma agenda esportiva à altura da sua importância histórica e sociocultural, do seu pendor inclusivo. Cartão-postal da pelada como ela é, o Aterro acolhe, a partir do segundo semestre, torneios que renovam a tradição de diversidade.

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    Com o apoio do Museu da Pelada, o cardápio inclui as mulheres, a comunidade LGBTQIAP+ e, claro, a turma da bandeja. A folclórica pelada dos garçons, eternizada no imaginário, é um patrimônio imemorial da madrugada carioca. Que boleiro nunca sonhou jogá-la?

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    A nova programação abraça essa mitologia, fonte inesgotável de personagens e histórias que formam e sustentam filiações cativas com o futebol. Histórias como as colecionadas nos campeonatos de pelada que agitaram o Aterro os anos 1960 e 1970, inicialmente organizados pelo Jornal dos Sports de Mário Filho. Milhares de times e espectadores os coroaram. Até Pelé se deliciou com os rachas, contemplados do hotel onde o Santos se hospedava.

    Histórias como as incorporadas pela Copa dos Refugiados e Imigrantes, iniciativa da ONG Pacto pelo Direito de Migrar. Disputada em março, a terceira edição agregou participantes de Angola, Colômbia, Haiti, Guiné-Bissau, Peru, República Democrática do Congo e da Venezuela. Golaço.

    Histórias como o próprio nascimento transgressor dos campos que desbancariam os jardins previstos no projeto original do Parque do Flamengo. Virada para a qual um entusiasta João Saldanha foi decisivo. Prevaleceram os apelos à democratização do esporte. E assim a pelada ganhava o seu Olimpo.

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    Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.

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