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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Carta aberta ao futuro prefeito

Parcerias com universidades ajudariam a alavancar políticas públicas de incentivo ao esporte como vetor de saúde e cidadania

Por Alexandre Carauta
Atualizado em 30 nov 2020, 18h22 - Publicado em 27 nov 2020, 12h36

Prezado prefeito,

A vocação para o esporte, sabemos, é um inestimável patrimônio carioca. Assim como o samba, o funk, a saliva, e outros ingredientes da identidade cultural elaborada sobre o fogo da mistura. Na música, no requebro, no papo, os contrastes se abraçam. Imitam a rima entre o verde e o azul. Estampada no cartão-postal e no imaginário coletivo, a integração confronta-se com persistentes engrenagens de desigualdade e exclusão. Englobam desde a cultura da segregação e da infâmia, embrulhada de moralismo, até fórmulas isolacionistas ou impróprias para equacionar a expansão urbana. Erradicá-las releva-se tão urgente, tão complexo, quanto restaurar as finanças, a autoestima e a esperança exauridas pela soma da corrupção com a inépcia administrativa.

A tarefa incluiria de novos modelos de moradias populares à efetivação dos serviços essenciais nas comunidades, sistematicamente comprimidos entre a negligência e a exploração irregular. Já passou a hora, sabemos, de o poder público espanar o pó da conivência e reassumir plenamente essa responsabilidade. Caso contrário, a construção de uma cidade mais inclusiva, digna e saudável permanecerá no gerúndio do palanque. Seguirá uma miragem presa às ladainhas de campanha, como o enclausurado personagem de Bill Murray em “Feitiço do tempo”. A sensação é velha conhecida do eleitor, do contribuinte, do cidadão.

Talvez seja preciso um grande pacto cívico para quebrar o feitiço. Reuniria gestores públicos, movimentos sociais, organizações não-governamentais, empresas privadas. Talvez não haja, na história recente, momento mais providencial para costurá-lo. Talvez os valores cooperativos despertados pela pandemia ajudem a formá-lo. Talvez o Rio deflagre uma corrente nacional. Talvez. Oxalá o sopro de mudança inerente às urnas assim nos conduza.

A largada envolveria tanto um rompimento com práticas clientelistas, perpetradas por cumplicidades transpartidárias, quanto um não menos difícil consenso em torno do modelo de cidade a construirmos. Arejada, integrada, segura, próspera, igualitária, resiliente, criativa, cordial, musical – como canta a alma carioca. Corrigir o desafino da realidade exige, antes de tudo, uma recalibragem moral. Aloja-se numa premissa decisiva: a democratização e a qualificação dos espaços urbanos são primordiais para estancar o racismo, o machismo, a intransigência e demais barreiras à cidadania.

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O primeiro passo é reconhecê-las, em vez de negá-las ou atribuí-las a terceiros. Latejam, sob nossas barbas, nos índices de homicídios: 75% das vítimas são pretas e pardas, aponta o Atlas da Violência 2020. A carência alimentar é igualmente sintomática: só 10% dos domicílios “chefiados” por pretos e pardos mostram-se totalmente livres do risco de alguma escala de “insegurança alimentar”, constata a Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE. O grupo corresponde à maioria dos 85 milhões de brasileiros no beco da falta parcial ou total de comida. Uma cidade mais integrada e inclusiva faz parte do premente coquetel de antídotos às degradações sociais. Nele não pode faltar o esporte.

O aperfeiçoamento de políticas públicas dedicadas ao esporte e à alimentação – de preferência, casadas – configura-se, também sabemos, uma prerrogativa constitucional. Prover “práticas desportivas formais e não formais”, voltadas ao lazer e ao bem-estar, é obrigação do Estado. Um dever não raramente atrofiado, mesmo numa cidade cuja cultura e cuja geografia cortejam a atividade física.

Eis aí, caro prefeito, uma oportunidade de resplandecer a vocação esportiva do Rio, como vetor de integração, lazer, saúde. Cultivar o hábito da atividade física é sinônimo de uma população mais saudável, menos vulnerável a doenças como obesidade, diabetes e pressão alta – as principais causas de mortes no mundo. Completam a receita preventiva a melhoria das condições alimentares e sanitárias. Missão não menos árdua num país onde a carência nutricional cresce pela escalada tanto da obesidade quanto da privação de (boa) comida. Onde 35 milhões sobrevivem sem água tratada.

Praticar uma atividade física ou esportiva pelo menos cinco vezes na semana – devidamente orientada e segura – reduz bastante o risco de doenças crônicas, ora chamadas de comorbidades. Atingiram, no ano passado, mais da metade dos brasileiros, assinala a Pesquisa Nacional de Saúde, do IBGE.

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Regularidade é a chave para virar esse jogo. Nela deve basear-se o incremento de programas de incentivo a práticas esportivas comunitárias. Incluiriam, por exemplo, o melhor aproveitamento do legado olímpico, como prevê o plano apresentado em 2017 pela Autoridade de Governança do Legado Olímpico (AGLO). O documento prescreve, entre outros compromissos, o uso das instalações dos Jogos de 2016 para “atividades orientadas à população em modalidades esportivas (…) e atividades voluntárias de caminhadas e prática de tênis”. Seriam oferecidas nos espaços do Parque Olímpico: Arenas Carioca 1 e 2, Velódromo, Complexo de Tênis.

obra

A execução integral da proposta estacionou em emaranhados políticos e jurídicos, nos quais se inserem desde a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público até o Comitê Olímpico, o governo federal e a Prefeitura. Desatar esses nós é o primeiro passo para vitaminar a herança olímpica e consumá-la propulsora de cidadania. Quem sabe o rito da transformação eleitoral não o encoraje a tomar a iniciativa?

Um bom começo seria abrir ou estreitar a conversa com o Escritório de Governança do Legado Olímpico (EGLO). Vinculado ao Ministério da Cidadania, o substituto da AGLO, extinta em meados do ano passado, assumiu o propósito de elaborar um “plano de utilização de instalações olímpicas e paralímpicas”. Supõe-se que a empreitada dedicaria-se a ajustes e aprimoramentos da partitura de 122 páginas avalizada há três anos pelo Ministério dos Esportes. Assim pedem o tempo, o dinheiro e os compromissos nelas empenhados.

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Parcerias com empresas são sempre lembradas para viabilizar melhores serviços. Pode ajudar a deslanchá-las a isenção fiscal em vigor desde dezembro do ano passado. A lei municipal 6.568 reduz a carga de INSS e IPTU das pessoas jurídicas e físicas que investem no setor esportivo. Parece necessário torná-la mais conhecida e aplicada.

esporte

A expansão de programas de esportes e atividades físicas seria impulsionada também por parcerias com universidades. Quando o pesadelo se for, praças, praias e outros ambientes públicos acolheriam sistematicamente serviços como avaliação postural, aferição da pressão arterial e do percentual de gordura, prescrição de rotina alimentar e de exercícios, aulas de ginástica – serviços prestados, com supervisão técnica, por estudantes de Educação Física, Nutrição, Fisioterapia. Infelizmente, ações do gênero não costumam durar muito ou limitam-se a determinados bairros. Deveriam ganhar a vida longa e a cobertura irrestrita das políticas de Estado.

A prática regular de esportes e atividade física, combinada com uma alimentação equilibrada, revela-se a forma mais barata e eficiente de prevenir doenças e democraizar o bem-estar. O desenvolvimento de políticas públicas para estimulá-la e assegurá-la às diferentes camadas sociais é um dever estatal estendido à gestão do município.

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Tais políticas representam, no médio e no longo prazos, um baita ganho de qualidade de vida. Constituem um salto para conter ameaças como hipertensão e diabetes (afetam, respectivamente, quase 40 milhões e 12,5 milhões de brasileiros). Tais políticas representam também uma expressiva economia dos gastos com o sistema público de Saúde. Um benefício especialmente importante aos cofres esvaziados por roubalheiras e imperícias.

A pandemia, claro, dificulta essa guinada. Pedregulhos políticos e econômicos, alguns bem mais antigos e nocivos do que o trágico vírus, também testam a vontade e a competência para chegar lá. O fôlego virá da capacidade de integração ou reintegração social. A hora é essa.

Um abraço cordial

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Os 20 quarteirões que abraçaram a Casa Rosada no velório de Maradona, em Buenos Aires, expõem a dimensão catalisadora do mito. Uma dimensão acima da genialidade dos dribles, arrancadas, gols. Uma dimensão sagrada, feita de filiações afetivas, simbólicas, identitárias. Além do craque, do mundo da bola. Nela Maradona perpetua-se imbatível para os hermanos. Essa majestade, nenhum outro mortal haverá de tirar-lhe. Há muito já pertencia à eternidade.

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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. 

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