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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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O caso ‘Friends’

Ao buscarmos juventude eterna, arriscamos feiura permanente. O conflito não é novidade e a ópera já contava esta história

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Atualizado em 15 jun 2021, 11h43 - Publicado em 15 jun 2021, 09h05

Como muitos de minha geração, assisti ao seriado americano “Friends” em primeira mão. Descobri-o um pouco tarde até, quando já andava pela antepenúltima temporada e muitas boas histórias e risadas haviam passado debaixo da ponte. Por sorte, embora na época o ‘streaming’ fosse um sonho e o Youtube ainda engatinhasse, era possível ir atrás dos DVDs. Naquele ainda início de anos 2000, rir não foi exatamente barato mas valeu à pena. Em 2004, quando foi ao ar o último episódio, fui certamente um dos 52milhões que ficaram grudados na televisão para assistir ao final, e junto com meus “friends”.

O seriado acompanhava um grupo de amigos no começo de suas vidas adultas, algo entre o final dos seus 20 anos e a metade dos 30. Como na famosa ópera de Puccini, “La Bohème”, “Friends” fala de juventude — e termina quando esta chega ao fim.Com uma década a menos que eles à época do último episódio, eu e meus amigos víamos a nós mesmos espelhados ali — sem saber disso então. Se para os boêmios da ópera esse recorte de vida termina com a morte de Mimi, eu e meus amigos, assim como os seis “friends” do seriado americano têm mais sorte: deixamos de acompanhar suas vidas quando ‘crescem’ e parte para a vida de casados, com filhos e fora da efervescente metrópole de Nova Iorque. Quando revejo os episódios, com sua moda já meio fora de moda, e piadas que já são amigas íntimas, percebo o desenho do sonho americano no seu melhor modelo — com uma pouca diversidade que hoje em dia seria um tanto quanto problemática…

Óperas e balés que falam de juventude sempre flertam com a idealização versus a (para alguns) tragédia pessoal do envelhecimento. Se a dança moderna oferece uma importantíssima sobrevida artística a bailarinos mais velhos, o clássico, é mais limitado em suas opções. Na ópera, tenores que deveriam ser ‘mocinhos’ nem sempre conseguem esconder a peruca mal escolhida, a barriga estufada e o excesso de maquiagem — mas são a voz mais rara da ópera e sempre um bom tenor achará quem o contrate. Mezzos e contraltos, barítonos e baixos, têm o papel do vilão, da mãe, da velha cega, da cigana louca, do avô etc; safam-se melhor. A pior vida talvez seja a do soprano, seja ela a ‘mocinha’ ou a amante apaixonada. Há mais de uma década, lembro de um espetáculo com uma veterana cantora, que, apesar de seus mais de 70 anos, mantinha a voz intacta; ela dizia que havia parado de cantar ópera encenada quando percebeu que passava mais tempo na maquiagem do que em cena, no palco.

A questão da idade é algumas vezes o tema central de uma ópera, ou um dos motivos condutores. A lista seria grande para citar todas aqui, mas vai desde “O Cavalheiro da Rosa”, de Strauss, até “Thais“, de Massenet, passando por “La Traviata”, de Verdi. Numa, a protagonista feminina, está claramente incomodada com o envelhecer e fala que o tempo é uma coisa ‘estranha’; confessa, inclusive, que de madrugada costuma passear pelo palácio e parar todos os relógios. Em outra, a cortesã da antiguidade chega a cantar uma ária invocando à Venus que lhe prometa ficar sempre bela, eternamente. Já na famosa versão lírica de “A Dama das Camélias”, é dito claramente à protagonista que seu amor durará apenas enquanto ela for jovem; “a natureza do homem é quase sempre volúvel”, afirmam para forçá-la a abandonar o jovem que ama. De todas as discussões operísticas sobre idade nenhuma é, em minha opinião, mais fascinante do que a incrível “O Caso Makropulos”, de Janácek: não somente é a história de uma mulher de mais de 300 anos, mas igualmente da inutilidade de se viver tanto se perdemos a capacidade de sentir, de amar. O tema é incômodo, e a compressão do tempo sempre nos foge.

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Essa mesma ‘idealização’ da realidade foi o que mais me intrigou no recente “Friends: The Reunion”, especial que reuniu os 06 protagonistas num episódio com ares de “talk show”, e que o Brasil poderá assistir ainda em junho. Não faltaram acenos à comunidades que não estavam incluídas ou representadas nas várias temporadas, talvez como contrapeso à citada falta de diversidade da série original. Se um pouco gratuitos, foi bom perceber que alguém teve a sanidade de reconhecer que essas questões, hoje em dia, importam e muito. Curioso, aliás, que alguns países tenham cortado esses trechos da transmissão; uma censura que só faz pensar em como é importante insistir no tema. No entanto, há um tópico que foi solenemente ignorado: idade, envelhecimento e maturidade. Seria uma censura ao tempo, ao inevitável fato de que todos “oxidamos”? Sim, pois ao contrário de falar sobre o assunto, em um determinado momento o apresentador ainda insistiu em comentar como os seis estavam “young” e “hot”. Será mesmo?

Pessoalmente, achei que esses seis atores tão queridos, talentosos e bem-sucedidos perderam uma maravilhosa oportunidade: a de passar uma mensagem ao mundo, se não de crescimento pessoal ou espiritual, de crítica a um mundo que condena à busca de uma juventude eterna, em especial às mulheres. Uma juventude falsa, frequentemente dolorosa, não poucas vezes deformante. Estranho a maneira como evitaram o tema, posto que “está na cara” — literalmente — que é algo profundamente importante para (quase) todos ali. Na opção pelo silêncio talvez more a explicação: já dizia Stendhal que “quem muito se desculpa, culpa-se”. “Friends” significa ‘Amigos’; se deixam fazer isso com seus rostos, vale a pena buscar novas amizades.

André Heller-Lopes,
Encenador de óperas, duas vezes Diretor Artístico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro,
é Professor da Escola de Música da UFRJ e membro da Direção do Fórum Brasileiro de Ópera Dança & Música de Concerto.

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