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Por Analice Gigliotti, psiquiatra
Comportamento
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Inteligência Artificial: ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

Revolução tecnológica desafia a morte e o direito à própria imagem

Por Analice Gigliotti
17 jul 2023, 15h20

Foi como um rastilho de pólvora. Em questão de minutos, não se falava em outra coisa nas redes sociais (e fora dela): Elis Regina, “reencarnada” pela inteligência artificial, ao volante de uma Kombi dos anos 70, lado a lado com a filha Maria Rita dirigindo em uma Kombi nova, ambas cantando o clássico “Como nossos pais” em um anúncio de uma montadora de carros.

A internet “quebrou” e as opiniões se dividiram. Uma parte embarcou na proposta nostálgica, ficou tocada com a campanha que apelava diretamente à emoção. A outra, se assustou diante da possibilidade de se ressucitar virtualmente uma pessoa que faleceu há mais de 40 anos, ainda mais com fins tão claramente comerciais e não artísticos.

Com o passar dos dias, a reação só fez crescer. O Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar), iniciou um processo ético para investigar a propaganda após receber queixas de consumidores, que questionaram se o uso da inteligência artificial era ético “para trazer pessoa falecida de volta à vida “. Os três filhos da artista se defendem, dizendo que enxergaram na propaganda a oportunidade de ampliar às novas gerações o conhecimento da obra da mãe.

O fato é que as mudanças tecnológicas ocorreram rápido demais. Nos anos 1990, todo mundo se admirou positivamente quando a tecnologia permitiu um dueto entre a cantora Natalie Cole e seu pai, Nat King Cole, falecido em 1965. Apenas trinta anos depois, estamos vivendo a era da deep fake, com a multiplicação e adulteração da imagem e da voz alheias.

Até bem pouco tempo atrás, quando uma pessoa morria, ela legava a seus herdeiros os seus bens (e, no caso de artistas, as obras estão neste contexto). Não mais. Agora, quando morremos, legamos aos descendentes a decisão sobre o direito da nossa imagem. Quando morreu, em 1982, Elis jamais poderia supor que os filhos teriam que decidir, 30 anos depois, se a imagem da cantora poderia ou não ser utilizada em um comercial de veículos.

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Na franquia do filme “Velozes e Furiosos”, Paul Walker foi inserido digitalmente em uma das sequências, depois que o ator morreu em um acidente de carro. A atriz Carrie Fisher, morta em 2016, foi recriada digitalmente para aparecer como a jovem Princesa Leia no filme “Rogue One: Uma História Star Wars”. Em uma linda homenagem, a TV Globo inseriu a imagem de Claudio Marzo na nova versão da novela “Pantanal”, embora o ator tenha morrido quase 10 anos atrás. Os casos já são muitos e tendem a aumentar. Todos estes artistas autorizariam a reprodução das suas imagens post mortem?Nunca saberemos.

Estúdios americanos já começam a negociar com artistas o direito de escanear o rosto de atores para usar as imagens para sempre, sem remuneração extra, em cenas futuras de filmes e programas de TV, mesmo depois de mortos. A classe artística se organiza para combater o que considera uma arbitrariedade, chegando a fazer greve nos Estados Unidos. Cientes que se trata de um caminho irreversível, quem tem uma imagem pública a zelar (e faturar) se apressa para registrar formalmente o seu desejo. Madonna proibiu veementemente que os filhos utilizem sua imagem por meio de hologramas, como já foi feito pelos herdeiros da cantora Whitney Houston.

Já o ator Keanu Reeves proíbe deep fakes e edição digital de suas atuações. “Não me refiro à edição, é claro. Não me importo se o editor trabalha em função da minha performance, tirando uma piscada que eu dei no momento errado ou algo assim. Mas, no começo dos anos 2000, ou talvez ainda fosse o fim dos anos 1990, uma atuação minha foi modificada digitalmente. Eles incluíram uma lágrima no meu rosto, e quando assisti ao filme pensei: ‘O que é isso? Eles nem precisam mais de mim”, explicou.

O ator levantou ainda um questionamento: “Culturalmente, socialmente, vamos ser confrontados em breve pelo valor ou não-valor do que é real. E, dependendo do que decidirmos, o que será empurrado para nós?”. Instigante provocação que já é realidade, quando vemos a imagem de políticos sendo manipuladas ou o Papa “usando” um casaco de luxo que nunca foi dele.

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Mais rápido que imaginávamos, todos nós, e não apenas famosos, políticos e celebridades teremos que lidar com mais e mais perguntas como a de Reeves. Qual o impacto dos avanços tecnológicos na preservação da memória? Teremos direito a morrer ou a inteligência artificial nos dará uma nova forma de vida pós-morte? E você, cederia a sua imagem a ser usada depois da sua morte?

A seguir, cenas dos próximos capítulos.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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