A solidariedade entre vizinhos impulsionou negócios de bairro
Emergente espírito de vizinhança e cooperação tem sido vital para os pequenos empreendedores do Rio
Nos tempos de quarentena, quem pôde saiu de casa o estritamente necessário e, mesmo assim, não foi longe – no máximo a um mercado aqui, uma farmácia ali. Daí pessoas que nunca tinham prestado atenção em uma lojinha, um ateliê, um restaurante logo ao lado começaram a descobrir os encantos do comércio em seu próprio bairro.
Uma pesquisa realizada pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Rio captou o movimento – 82% dos cariocas disseram ter priorizado tais negócios – e revela que a tendência segue firme – o mesmo grupo afirma que continuará fiel a eles.
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“A necessidade levou muita gente a redescobrir a própria vizinhança”, avalia Rafael Zanderer, economista do Instituto Fecomércio de Pesquisas e Análises. Informalmente ou de modo organizado, essa clientela tem criado redes de apoio aos comerciantes de seu entorno.
Esse emergente espírito de vizinhança e cooperação tem sido vital para os pequenos empreendedores do Rio. Eles respondem por quase um terço do PIB fluminense e por metade dos empregos, mas são também o lado mais vulnerável da cadeia econômica.
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“Consumir localmente ajuda a fortalecer a economia movida por esses empreendedores, sem falar nos benefícios ao meio ambiente que se obtêm com a eliminação da necessidade de transporte”, lembra Ana Lúcia Lima, gerente de projetos do Sebrae-Rio. A instituição lançou a campanha Compre do Pequeno e vai oferecer ainda oficinas e consultorias para alavancar o setor, alcançando 2 500 estabelecimentos na cidade.
A população também tem entrado em cena, com iniciativas que lançam luz sobre portinholas onde estão guardadas boas surpresas. Criado há menos de três meses, o perfil no Instagram Levanta Botafogo! chama atenção para lugares cheios de charme, mas nenhum holofote, em posts que dão o serviço completo.
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Tem de tudo ali: do massagista à artesã que fabrica almofadas terapêuticas; da lojinha de consertos de roupa ao especialista que converte VHS em mídias digitais. E encontra-se também muito delivery de comida preparada em panelas mais caseiras. “Quanta coisa há aqui perto que eu nem sabia que existia”, fala a moradora Kely Ferri num dos posts.
Foi nesse variado e vivo catálogo que os vizinhos de Flávia Zupo tomaram conhecimento de sua marca de joias, criada no fim de 2019, depois de ela deixar o trabalho na área de recursos humanos. No ateliê montado em casa, a ourives desenha e fabrica sozinha, a mão, anéis, brincos e colares de prata e pedraria em design contemporâneo. Suas vendas estavam esquentando quando veio a pandemia. “Deu aquela desanimada. Fiquei um mês sem produzir, mas o pedido de uma cliente me estimulou”, lembra ela, que começou a virar o jogo em maio, no auge da crise sanitária no Rio.
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“Os vizinhos têm ajudado. Uma cliente foi indicando a outra, e as vendas engrenaram”, diz a artesã, que recebe hoje uma média de sessenta pedidos por mês, 20% mais do que antes. Ela própria passou a ser cliente de negócios de seu bairro, como a padaria artesanal Hoop Bakery. E do encontro de pessoas que se esbarravam sem se falar surgiram parcerias, como a que Flávia firmou com a fotógrafa Luiza Chataignier, do estúdio Ocre, e com a consultora de estilo Luana Colussi.
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Muita gente imbuída da ideia de contribuir com o próximo dá preferência declarada aos pequenos negócios – e o boca a boca vai assim ganhando volume. Moradora do Flamengo, a profissional de marketing Camila Vieira, 33 anos, divide no Instagram o roteiro das pequenas lojas que vem desbravando e, desse jeito, já deu uma mãozinha, por exemplo, a Dani Resende, que cria kits de doces personalizados para presentear, e à família síria que revendia salgados na porta do metrô do bairro, mas que, com a queda no movimento, abriu um comércio no Cosme Velho. “Acho importante dar um gás aos menores, que não têm tanto fôlego para enfrentar a crise. Além disso, acredito no ganho de qualidade proporcionado pelo trabalho mais artesanal”, afirma.
Aproximar produtores de consumidores está na base de negócios como a Junta Local, feira que une produtores de todo o estado, nascida em 2014. “Ao comprar, a pessoa tem a vantagem de saber quem cultivou seu alimento e em que condições”, explica Thiago Nasser, um dos fundadores da Junta. A escala é menor e o preço mais alto, mas a
transação se apoia na premissa de que o maior controle sobre o que vai ao prato tem valor.
Com as feiras suspensas por ora, Nasser segue promovendo a chamada Sacola Virtual, sistema de compra pela internet que tem recebido, nestes tempos, um número sete vezes maior de pedidos. “Tem o lado da conveniência, mas também vejo nesse movimento uma busca por qualidade e pela aplicação do dinheiro em algo que possa ajudar a mudar o entorno”, ele avalia.
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O conceito do feito em casa também se fortaleceu na pandemia, como um modo de encontrar conforto e bem-estar. “Acho que muitos saíram em busca da comida afetiva, e o pão quentinho com manteiga é a expressão máxima disso”, analisa a padeira Marta Carvalho, da Martoca, que produz fornadas às terças, quintas e sextas no ateliê montado em sua casa, no Jardim Botânico. As vendas triplicaram.
“Querem saber de onde vem o produto, muitas vezes feito do início ao fim por uma única pessoa. Além da valorização do artesanal, que já vinha crescendo antes da crise sanitária, percebo um bem-vindo espírito de comunidade ganhando força”, diz.
A presença digital é algo fundamental no sucesso de negócios desse tipo – e ainda uma deficiência entre comerciantes mais tradicionais. Mas isso vai mudando. Surgem a toda hora no cenário hashtags como #comprelocalrj e iniciativas que têm como base aplicativos ou sites de venda on-line – como o Jaeé Market, que tem feito escoar a produção de agricultores que viviam de fornecer merenda escolar na rede estadual, ou Meu Amigo Tem um Sítio, rede que conecta cinquenta pequenos produtores de alimentos orgânicos da Serra fluminense e faz entregas na capital. De grão em grão, ele e outros vão crescendo e aparecendo.
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