Em plena pandemia, o MAM Rio se torna exemplo de inovação cultural
Uma das instituições culturais mais importantes do país recupera sua melhor tradição e, ao mesmo tempo, aponta para um futuro de alta potência artística
Da janela de casa, o artista plástico Marcos Chaves acompanhou empolgado o processo de transformação. “Estão limpando tudo, tiraram uns painéis horrorosos que ficavam ali atrás. É uma ótima notícia, trata-se de um dos prédios mais bonitos da América Latina”, comemora ele. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, destaque arquitetônico na paisagem carioca, mudou por fora e por dentro — isso em plena pandemia. À frente do processo, o economista Fabio Szwarcwald assumiu o posto de diretor executivo da instituição em janeiro de 2020. Logo inaugurou, em março, Irmãos Campana — 35 Revoluções, mostra grandiosa dedicada aos consagrados designers Fernando e Humberto Campana, que fecharia as portas três dias depois.
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A Covid-19 afastou o público do belo prédio no Aterro do Flamengo por longos períodos. Foram seis meses no ano passado e, em 2021, mais 45 dias, com recente reabertura no último dia 6. Agora, aguardam os visitantes uma coletiva de acervo novinha em folha, Estado Bruto, dedicada a esculturas (veja no quadro), além da exposição Fayga Ostrower: Formações do Avesso e da individual do próprio Marcos Chaves, As Imagens que Nos Contam. Ambas tiveram suas temporadas interrompidas e voltam a toda, já no edifício renovado.
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A experiência de montar sua exposição no cartão-postal modernista traçado pelo mestre Affonso Eduardo Reidy nos anos 1950 foi, para Marcos, de alta intensidade. “Não se trata de uma retrospectiva, mas, com o grau de organização que eles alcançaram, conseguimos reunir quatro décadas de trabalho”, entusiasma-se. Entre setenta obras selecionadas, figura seu famoso vídeo Eu Só Vendo à Vista, uma brincadeira com a imagem do Pão de Açúcar — “que está logo ali fora, olhando para dentro do museu”, comenta Chaves. Uma das notáveis sacudidas no espaço interno do MAM foi justamente derrubar paredes e abrandar a escuridão das vidraças para arejar a área, deixar a luz passar e reintegrar o museu ao seu entorno, reconciliando-o com o projeto original.
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“A correspondência entre a obra arquitetural e o ambiente físico que a envolve é uma questão da maior importância. No caso do edifício do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, essa condição adquire ainda maior vulto, dada a situação privilegiada do lugar em que está sendo construído”, escreveu Reidy, em 1953, no memorial descritivo do plano de construção de um dos mais relevantes depositários da arte moderna no país. “Vem daí essa vontade de trazer a cidade para dentro do museu e vice-versa, enxergá-la a partir do seu interior”, arremata Marcos Chaves.
A direção artística, criada na nova gestão, está aos cuidados do espanhol Pablo Lafuente e da carioca Keyna Eleison, que coordenam os vários departamentos do museu envolvidos na montagem de uma exposição — entre outros, a museologia, que cuida de acervo e documentação, a biblioteca, o setor educativo, a comunicação. “Hoje, esses setores passaram a conversar, dando agilidade a todo o processo”, explica o diretor executivo Fabio Szwarcwald. Dentro da estrutura da instituição, mais áreas surgiram e a equipe saltou de 74 para 92 integrantes. A aposta principal dessa turma, claro, foi no digital. “Como todo mundo, tivemos de nos adaptar. A programação de educação para crianças saiu rapidamente e logo desenvolvemos novas formas de servir aos interesses do público”, lembra Szwarcwald.
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A interação através de redes sociais, como o Instagram, foi intensificada — para o diretor do MAM, um exemplo nessa área é o engajamento monumental do Museu Van Gogh, de Amsterdã, com 1,9 milhão de seguidores (contra os quase 87 000 de seu par carioca). Oferecidas em 3D, visitas virtuais também franquearam o acesso às exposições, como ocorreu planeta afora nos grandes templos das artes. Em 7 de julho, no aniversário de 65 anos da venerada Cinemateca, a exibição de clássicos da tela trocou a histórica sala local (fechada pela pandemia) por um canal na plataforma de compartilhamento de vídeos Vimeo. Desde então, mais de 70 000 pessoas assistiram on-line às fitas, número equivalente a todos os 180 lugares lotados de pelo menos uma sessão diária, ao longo de mais de um ano.
Nestes últimos meses de lentidão em tantos setores, a rotina no Museu de Arte Moderna continuou acelerada. Projeto antigo, um espaço para a guarda permanente do acervo da Cinemateca foi providenciado em 2020: dois prédios na Rua do Senado já acomodam 90% da rica coleção — 2,5 milhões de documentos, 23 000 títulos, 60 000 rolos de filmes —, em breve disponível para pesquisa. No início deste ano, o gostinho do Carnaval que não houve foi provado nas atrações de Saberes de Mangueira, série de oficinas e palestras realizada com curadoria do carnavalesco Leandro Vieira e protagonismo de artistas da tradicional escola de samba.
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“Foram três meses de programação gratuita, como são outras palestras e as visitas guiadas dominicais. Quem paga a conta? As empresas”, explica Szwarcwald. Economista com experiência no setor de investimentos (foi executivo do banco Credit Suisse), o diretor do MAM firmou parcerias estratégicas para a reestruturação do museu. Calcula que teve uma reunião a cada dois dias entre setembro e dezembro do ano passado, maratona da qual saiu com cinquenta novos apoiadores pessoas físicas e vinte empresas, que se somaram às três patrocinadoras acertadas até então.
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Quando ainda era conselheiro da instituição, Fabio Szwarcwald atuou como um defensor decidido da venda da tela Nº 16, do pintor americano Jackson Pollock, expoente do expressionismo abstrato — a joia do acervo seria leiloada em 2019 por 46,7 milhões de reais. O negócio pré-pandemia inspirou animada discussão sobre a oportunidade de um museu se desfazer de seus bens mais preciosos. “O museu poderia até encerrar suas atividades, e considerei mais importante ter recursos para poder investir na manutenção do acervo, do prédio, na construção de um programa forte de educação, tudo viabilizado pela venda do Pollock”, resume o agora diretor.
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Além das frutíferas parcerias estratégicas e do financiamento através da legislação de incentivo à cultura, nos três níveis da federação, ideias às vezes simples se fazem bem-vindas para agitar a bilheteria. Lançada no ensaio de retomada do ano passado, a adoção do ingresso gratuito, com valor de contribuição sugerido (e apoio do grupo de investimentos PetraGold), resultou em 300% de aumento da visitação, em plena pandemia — e a receita média dobrou.
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A nova administração também investe em visitas inclusivas — “um direito, uma obrigação, a mostra de Fayga Ostrower já tem versão em libras”, avisa o diretor — e abriu cinco programas de residência remunerada. “Quando cheguei, tinha como referência o próprio passado do MAM, com os Domingos da Criação, do curador Frederico Morais”, lembra Fabio Szwarcwald. “Em plena ditadura, ele juntava milhares de pessoas para pensar, discutir e fazer arte. Isso vai voltar assim que possível”. Não por acaso, ressalta Fabio, Frederico Morais foi diretor do Bloco Escola, o primeiro prédio da sede a ser construído.
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Fabio começou sua própria coleção de arte há duas décadas e, tempos depois, estreou na gestão de ícones da cultura na cidade. Assumiu o Museu de Arte Moderna após quase três anos de uma atuação ao mesmo tempo tumultuosa e bem-sucedida à frente do Parque Lage. Antes de ser afastado pela segunda e última vez de seu cargo na instituição, subordinada ao governo estadual — nas conturbadas gestões dos governadores Luiz Fernando Pezão e Wilson Witzel —, esteve à frente de sucessos de público, crítica e civilidade do naipe da Queermuseu. A coletiva, perseguida por correntes conservadoras, foi acolhida no Parque Lage e, em um mês, atraiu 40 000 visitantes, embalou vinte apresentações musicais e inspirou doze palestras. É esse o ritmo que ele pretende imprimir no MAM, sem nunca esquecer a seguinte máxima: “Aqui, a estrela do museu é o próprio museu”.
Tesouros guardados
Nova mostra revela esculturas que não são expostas há mais de duas décadas
O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro possui mais de 16 000 obras no seu acervo. Os espaços onde esse tesouro é guardado viraram o playground dos curadores Pablo Lafuente e Keyna Eleison, que dividem a direção artística do MAM. Das investidas na reserva técnica resulta a exposição Estado Bruto. Definida como um “jardim de esculturas”, a mostra exibe 126 obras de 107 artistas — 24 delas não encontram o público há pelo menos duas décadas. “O MAM tem uma coleção gigante, mas, curiosamente, exibe os mesmos artistas. Fomos buscar peças esquecidas para mostrar que o museu tem muito mais histórias para contar”, diz Lafuente.
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Em Estado Bruto, o visitante esbarra com nomes consagrados, estrelas nacionais e internacionais do porte de Amilcar de Castro, Giacometti, Maria Martins e Rodin, ao lado de segredos guardados, como Moça em Pé (foto), produzida em 1954 por Felícia Leirner. Ainda em 2021, o MAM vai receber reforços. Até o fim do ano serão montadas na parte externa uma instalação de vidro do artista americano Dan Graham e, na fachada, uma da brasileira Carmela Gross, que poderá ser vista de longe. “Esses trabalhos têm a ver com a ideia de que tudo lá fora entra no museu e o contrário também acontece”, enfatiza o diretor artístico. Que sejam todos bem-vindos.