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Receitas da longevidade

Berços da legítima culinária carioca, bares e restaurantes com mais de um século de funcionamento cativam a clientela ao oferecer uma viagem por cenários e sabores do Rio de antigamente. Nenhuma cidade brasileira tem tantos endereços centenários

Por Daniela Pessoa e Fabio Codeço
Atualizado em 5 jun 2017, 14h32 - Publicado em 23 Maio 2012, 16h56
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Toda terça-feira, por volta do meio-dia, Orlando Almeida Duque retira do armário uma flâmula do Flamengo e a coloca sobre a mesa próxima ao elevador, no 2º andar da Confeitaria Colombo, no Centro. Ali se reúnem, há pelo menos setenta anos, membros da mais alta cúpula do time rubro-negro. Seria uma missão banal em sua rotina de garçom, não fosse ele um vascaíno fanático. Para ir à forra, quando recebe medalhões de seu time faz questão de estender o manto cruz-maltino. Aos 74 anos, Duque é o mais antigo funcionário do estabelecimento, fundado em 1894. No próximo dia 1º de julho, completa sessenta anos de casa. Ali, serviu a nata política e intelectual da época em que o Rio era a capital federal, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e até a rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Mas o episódio que mais o emocionou é surpreendente para quem atendeu tantas personalidades. “Jamais esquecerei o dia em que foi feita a assinatura do primeiro contrato do Bismarck com o Vasco, no fim dos anos 80”, lembra. Com sua visão bem peculiar da história, ele é a personificação de um fenômeno tipicamente carioca: os endereços gastronômicos com mais de um século. São dez lugares, que vão da lendária Casa Cavé, fundada em 1860, ao espartano Armazém Senado, de 1907. Juntos, eles fazem do Rio de Janeiro a cidade brasileira com o maior número de pontos centenários em plena atividade.

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Tomar um chá em meio aos imensos espelhos belgas da Colombo ou apreciar um bolinho de bacalhau junto ao balcão do Rio Minho, casa de 1884 instalada em um belo sobrado histórico da Rua do Ouvidor, equivale a comprar um tíquete para uma viagem no tempo. Nesses lugares é possível ter uma pequena amostra do riquíssimo passado carioca, seja na forma de móveis, utensílios e detalhes arquitetônicos, seja por meio de sabores que remetem à opulência de antigamente. Já há muitos anos afastadas do coruscante circuito dos restaurantes da moda, tais casas se impõem principalmente pelos vínculos afetivos e emocionais que despertam em seus clientes. Mas não apenas por isso. “Tudo aqui é acolhedor. O ambiente, os menus sem invencionices, as porções fartas e os garçons que conhecem a gente pelo nome”, define a consultora de moda Helen Pomposelli, frequentadora assídua do Lamas, verdadeira instituição de 138 anos baseada no Flamengo. Nas visitas, uma tradição de família, ela ganha a companhia de sua filha Francesca, 9 anos, que passa a semana inteira sonhando com o clássico bife à milanesa lá preparado.

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[—FI—]

Em uma cidade onde a vida útil dos novos endereços costuma ser fugaz e raramente ultrapassa os quatro anos, segundo o Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes, virar um século é um feito notável. A fórmula do sucesso, como aqueles pratos preparados por nossas avós, costuma juntar os ingredientes meio a olho, sem um modo de preparo escrito no papel, mas sempre com rigor obsessivo. Inaugurada em 1860, a Casa Cavé é o estabelecimento mais antigo da capital e atravessou décadas tendo como grande chamariz os tradicionais doces portugueses, cujos apreciadores iam de Olavo Bilac e Rui Barbosa ao barão do Rio Branco e o prefeito Pereira Passos. Na produção dos quitutes, atualmente trabalham 44 funcionários, a maioria com trinta anos de casa ou mais, uma expertise que perpetua o padrão de qualidade das receitas, saboreadas por sucessivas gerações. Há dez anos, porém, a confeitaria teve de deixar a sede original depois de o proprietário pedir parte do imóvel de volta. Do belo prédio com vitrais franceses em estilo art nouveau na esquina das ruas Sete de Setembro e Uruguaiana, eles tiveram de recomeçar na discreta loja onde funcionou a chapelaria A Radiante, logo ao lado. “Perdemos um quarto de nossa clientela”, lamenta o sócio Henrique Bernardo. Tombado pelo patrimônio histórico, o antigo prédio, hoje ocupado pela concorrente Manon, conserva o letreiro original na porta do salão, o que ainda causa uma grande confusão. “A clientela vai para lá achando que está na Cavé”, diz Bernardo. Apesar do imbróglio que corre na Justiça pela retirada do nome da fachada, a confeitaria segue vendendo por mês 3?000 unidades de éclair, 6?000 de mil-folhas e 18?000 de pastel de belém, a grande estrela da doçaria portuguesa. De tão benfeitos, os pastéis da Cavé abastecem ícones da gastronomia local, como o badaladíssimo Antiquarius, no Leblon.

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Testemunhas de uma época em que os fatos e os personagens mais importantes da cidade (e do país) se concentravam basicamente em torno do porto, da Praça XV e da Lapa, é natural que os restaurantes e bares históricos estejam também nessa região. Na época em que eles surgiram, o Rio experimentava o auge da efervescência cosmopolita iniciada com a chegada da corte portuguesa, em 1808. “A região próxima ao porto era o grande centro político da época, onde ficavam a sede da Coroa, a Sé, a Câmara dos Vereadores e os grandes comerciantes”, destaca o historiador Nireu Cavalcanti. Um dos primeiros restaurantes cariocas de que se tem notícia foi aberto em 1817 perto do Paço Imperial, no Hotel Pharoux. Comandado pelo chef francês Charles Pharoux, era frequentado pelo rei dom João VI. Elegante, a Rua do Ouvidor abrigaria lugares célebres como o Café de Londres e as confeitarias Pascoal e Cailteau, ponto de encontro do chamado Club Rabelais, o primeiro a reunir gourmets cariocas. Como sede do governo, o Rio recebeu imigrantes de diversas nacionalidades, que acabaram recriando o DNA da cozinha local. Diferentemente da culinária baiana, da qual o acarajé, o vatapá e as moquecas com influência africana são receitas emblemáticas, a de nossas casas ficou famosa pela variedade de pratos e pela mistura de diversas culturas. Na Confeitaria Colombo, os docinhos franceses roubam a cena. Já no Nova Capela, reina a farta tradição portuguesa. O Bar Luiz e o Bar Brasil são enclaves de inspiração alemã, com muita cerveja, carne de porco e chucrute.

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Adeptos do bordão segundo o qual é preciso mudar para que nada mude, os lugares centenários incorporaram ao longo dos anos adaptações pontuais, principalmente no cardápio. Não raro, os próprios comensais contribuem com sugestões. A sopa leão veloso, por exemplo, foi criação do então ex-embaixador do Brasil na França, que a batizou. Inspirada na bouillabaisse de Marselha, surgiu no restaurante Rio Minho e se espalhou pela cidade. O clássico cabrito do Nova Capela era originalmente servido com brócolis salteado no alho e óleo. Na década de 70, a pedido dos clientes, o arroz entrou na receita. Reza a lenda que a famosa guarnição à francesa também teria sido inventada ali por um freguês que pediu para refogar batata palha, tiras de presunto, ervilha e cebola. Tudo junto. “O que pudermos fazer para agradar, nós fazemos”, afirma Aires Alves Figueiredo, proprietário do restaurante. Trata-se de algo impensável na maioria dos pontos moderninhos da Zona Sul, em que chefs de cozinha se sentem ofendidos quando alguém solicita uma alteração. Imagine então um cliente invadir a cozinha e preparar sua própria refeição. Era o que costumava fazer o filólogo, diplomata e gourmet Antônio Houaiss, frequentador assíduo do Rio Minho. “Ele deixava uma bagunça danada, mas cozinhava muito bem”, conta o chef e proprietário Ramon Tielas. A cavaquinha grelhada à houaiss, regada ao molho de vinho branco, açafrão espanhol e alho, está entre os pratos mais pedidos da casa. Houaiss sabia das coisas.

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Os mesmos atributos que garantem a fidelidade por sucessivas gerações de cariocas acabam por transformar esses lugares longevos em pontos de peregrinação de turistas. Em Paris, o Le Procope (1686), local em que Robespierre e Danton tramaram para cortar tantas cabeças após a Revolução Francesa, é procuradíssimo por estrangeiros, apesar da mediocridade de sua cozinha. Em Madri, o Botín (1725) é parada de viajantes curiosos. Por aqui não é diferente. A Confeitaria Colombo costuma receber durante o verão levas de visitantes que chegam em ônibus de excursão. Num raro momento de descontração em sua turnê brasileira em janeiro de 2011, a cantora Amy Winehouse, que morreria seis meses depois, resolveu sair do hotel em que estava hospedada, em Santa Teresa, e jantar no Nova Capela. Escolheu uma mesa no meio do salão e, acompanhada da produção, provou o famoso cabrito da casa. Adorou.

Em um esforço de valorização das raízes boêmias como parte do nosso patrimônio cultural, a prefeitura destacou doze bares para fazer parte do circuito turístico oficial da cidade, metade deles com mais de 100 anos de funcionamento. Ornamentada com prateleiras de madeira talhada datadas da época da abertura de suas portas, há 106 anos, a Casa Paladino faz parte da lista. Pitoresca mistura de armazém e bar na Rua Uruguaiana, agrada não só pelos fartos sanduíches e famosas omeletes mas também pelo ar de antigamente. Há duas semanas, o salão serviu de locação para uma cena do longa-metragem sobre o carnavalesco Joãosinho Trinta. “Não me rendi à modernidade. Seria até lucrativo, só que não quero ser apenas mais uma lanchonete”, diz Ricardo Razo, proprietário do empreendimento há 32 anos. E a melhor notícia é que a turma dos endereços centenários não corre risco algum de acabar. Ao contrário. No ano que vem mais, duas casas entrarão para o seleto grupo dos estabelecimentos centenários. Fundadas em 1913, a Padaria Bassil e a Casa Urich comemorarão um século servindo delícias de outros tempos.

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