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De cara nova: a transformação do Baixo Gávea, ícone da boemia carioca

O entorno da Praça Santos Dumont, na Gávea, ganha fôlego extra com a chegada de novas apostas etílicas e gastronômicas 

Por Carolina Barbosa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 jan 2021, 10h04 - Publicado em 15 jan 2021, 06h00
Fachada do Brewteco, bar instalado no Baixo Gávea
A quarta filial do Brewteco: no lugar do falecido Hipódromo (Léo Lemos/Veja Rio)
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Era uma segunda-feira à tarde, já em plena pandemia. Os empresários do ramo cervejeiro Rafael Thomaz, 38 anos, e Rafael Amaral, 39, se dirigiram um tanto ansiosos em direção ao Baixo Gávea. Não se tratava de um dia qualquer. Havia muita coisa — e tradição — em jogo. Como bons cariocas e rubro-negros, habituados a celebrar naquelas bandas títulos do Flamengo sempre acompanhados de chope e pizza, sentiam no encontro marcado no Braseiro da Gávea um sabor de vitória noutro campo: estava na mesa a assinatura do contrato para ocupar o amplo imóvel que durante 75 anos abrigou o icônico Hipódromo, fechado no fim de julho em meio à crise desencadeada pelo novo coronavírus.

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O acordo para fincar na esquina da frente a quarta unidade do Brewteco foi selado ali mesmo, na afamada varanda do que viria a ser seu futuro vizinho, tudo regado a chope e guarnecido de picanha e farofa de ovo. “O B.G. é uma área com poucos estabelecimentos e você acha que eles jamais irão embora. Fomos pegos de surpresa com o encerramento do Hipódromo, e a possibilidade de ir para lá nos deixou esperançosos, sem dormir algumas noites”, conta Thomaz.

Com o contrato firmado, o dono do Brewteco partiu para a matriz da rede, na Rua Dias Ferreira, a fim de festejar, um tanto aliviado — no meio das negociações, uma grande rede de farmácias entrou no caminho e tentou estorvar a transação. “Burocracias que costumam levar meses foram resolvidas em um ou dois dias, sem chateações, e a obra se estendeu por mais três meses, um recorde em nossa trajetória”, diz Amaral.

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A inauguração do espaço, no início de dezembro, deu uma renovada ao consagrado polo gastronômico e etílico, embalado ainda pela abertura do charmoso e despojado Proa Cozinha Bar. Em janeiro, a chef Joana Carvalho, também à frente do Jojö, no Horto, e seus sócios, Ana Lucia Carvalho e Guy Gaul, ergueram ao lado do árabe Haz sua cozinha focada em pescados e frutos do mar. “Nossa ideia é servir uma boa comida do mar sem cobrar caríssimo e preservando uma informalidade que casas especializadas não têm nessa área da Zona Sul”, define Joana, moradora do Alto Gávea, que investiu 1,5 milhão no negócio.

Chef Joana Carvalho em frente ao balcão do bar
Joana Carvalho: a chef está à frente do Proa Cozinha Bar (Léo Lemos/Divulgação)

Apesar de a cultura do balcão de chope prevalecer no Baixo Gávea, a chef decidiu inovar. “Faltava um bar de coquetelaria. Fizemos logo uma bancada de 8 metros”, conta a entusiasmada Joana, que realiza assim um sonho particular. “Queremos dar esse presente à cidade e recuperar o astral de arte e cultura que havia no B.G. nos anos 90, quando a nata do pensamento se reunia no local”, diz a carioca, habitué há três décadas desse animado canto da cidade.

A poucos metros, o novato Brewteco faz uma ode à cerveja artesanal em 42 bicas, das quais 36 jorram variedades distintas da bebida (um terço delas com exemplares de 300 mililitros abaixo de 10 reais). Também protagonista, a churrasqueira de antes cedeu lugar a uma moderna parrilla, de onde saem preparos fumegantes como linguiça e polvo. Em breve, entram no circuito as pizzas do antigo ocupante e tira-gostos, como empadas e bolinhos de bacalhau.

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O público nestes primeiros dias de funcionamento tem sido eclético — de famílias com crianças a turma mais velha e muitos jovens, variando de acordo com dia e horário. Fregueses curiosos de outras unidades do Brewteco, como a médica Rafaella Lessa, 33 anos, residente na Barra e presença esporádica no antigo Hipódromo no pós-praia de domingo, deram um pulinho por lá. “A seleção de cervejas é muito boa e o público, bacana. Faltava um barzinho legal assim no Baixo Gávea”, avalia Rafaella, que, numa noite de quarta-feira, confraternizava com as amigas Renata Castro, 33, e Karen Arce, 32. Os visitantes que se despencam de outros bairros se unem aos autênticos “gaveanos”. “Outro dia, duas senhorinhas se sentaram ao balcão, disseram ser clientes antigas, elogiaram a variedade das torneiras e prometeram voltar todo dia”, comenta Rafael Thomaz.

Inicialmente uma pacata e bucólica área residencial com açougue e um botequim aqui e ali, o hoje mitológico trecho da Praça Santos Dumont se desenhou point da boêmia carioca no início da década de 80, quando virou o “Baixo”. Já existia então o Baixo Leblon, conhecido à época por ser ponto de encontro de intelectuais e artistas como Cazuza e a turma do Pasquim. No caso da Gávea, com o Hipódromo já estabelecido, a vinda do Guimas e de quatro teatros, galerias e lojas de antiguidades no Shopping da Gávea funcionou como um ímã para clientela semelhante, turbinada por estudantes da PUC, que levavam às mesas as discussões acadêmicas. Não por acaso, o drama intitulado Baixo Gávea (1986), estrelado nos palcos por Lucélia Santos e Louise Cardoso, mostra duas jovens cariocas que dividem apartamento — uma diretora de teatro e outra atriz —, peça baseada no poeta português Fernando Pessoa.

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Na década seguinte, com a incorporação do B.G. Bar e do Braseiro, a juventude tornou-se presença maciça nas noites, sobretudo em dias de semana (quinta era um clássico). Famílias apareciam mais nos fins de semana. “Eu me lembro direitinho de ler na primeira página do Jornal do Brasil: nasce o Baixo Gávea. A mídia ajudou a impulsionar tal fama e o lugar começou a ferver, vivia lotado e virou uma baderna. Instaurou-se aí a segunda sem lei”, relembra, sem muita saudade, René Hasenclever, presidente da Associação de Moradores e Amigos da Gávea (Amagávea), em referência às aglomerações nas calçadas e nas ruas, fazendo barulho — alvo, naturalmente, de reclamação dos moradores.

Em 1999, a pedido deles, a prefeitura baixou um decreto determinando que os bares fechassem até 1 hora durante a semana, regra em vigor até hoje. Antes da pandemia, notava-se por ali um público mais maduro, que batia ponto no Dumont Arte Bar e no Samba da Gávea. “De um tempinho para cá, nós, na faixa dos 40, éramos a geração mais jovem. Isso tem a ver com a concorrência que surgiu em outras partes da cidade”, nota Luisa Mascarenhas, do Guimas.

Como é praxe em localidades que aliam roteiro etílico a zona residencial, a bagunça chateia uma parcela dos habitantes. Recentemente, os moradores do bairro criaram um grupo de WhatsApp intitulado Barulho Gávea — Não, justamente para tratar do incômodo. A ideia é contratar um escritório de advocacia para medir os decibéis no entorno e cobrar uma ação do poder público. “Queremos evitar que vire uma desordem de novo. Por isso, a partir de fevereiro, vamos exigir uma fiscalização rigorosa. É ótima a renovação, com gente jovem de volta, outra cabeça, traz novo fôlego à região, que sofreu uma evasão de público mais jovem para lugares como a Dias Ferreira. Mas precisa de organização”, pondera Hasenclever.

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A fim de evitar transtornos, o Brewteco fechou as diversas entradas da varanda e designou funcionários para conversar com ambulantes e orientar a clientela. Para o veterano Chico Mascarenhas, 72 anos, sócio-fundador do Guimas, há 39 anos na Rua José Roberto Macedo Soares, a nova fase é muito bem-vinda. “Quando abrimos, aquilo era um canto escuro, um buraco sem luz, hoje tem vida. O Guimas levou multidões ao Baixo, que iam jantar no restaurante e esticavam nos arredores”, lembra. “Há uma série de empreendimentos distintos e que se complementam, de churrasco e japonês a bares moderninhos. A concorrência estimula todos a melhorar”, afirma.

Infográfico mostrando os principais endereços de comida e bebida do Baixo Gávea
Trilhos da boemia (Arte/Veja Rio)

E esse movimento é visível. Na quarentena, o miúdo Bar do Alemão, com 35 anos de serviços prestados, entrou em obras para dar um tapa no visual, agora ambien­tado em verde e preto. A reabertura está prevista para meados de janeiro. Nessa toada, o ponto que sediou a loja de doces Menininha por quatro décadas se converterá no Guita Bistrô, dedicado a comidas leves, queijos, itens de rotisseria, vinhos nacionais, tudo oriundo de agricultura familiar. “O projeto é sustentável e utiliza água de reúso, além do saudável cardápio da chef Carol Vaz, da N.O.S. Escola”, adianta o sócio Pedro Alberto Protasio, 50 anos.

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E tem mais. O 2º andar do Brewteco, que alojava o Hipódromo Up, abrigará, em fevereiro, uma filial do drinque.bar (com grafia assim mesmo), inaugurado há cinco meses na Barra. Trata-se de um terraço arejado, com vista para a praça, dotado de carta de coquetelaria e cardápio mais sofisticado. “Neste ambiente de pandemia, em que se buscam cenários abertos, vimos a oportunidade de oferecer drinques de altíssimo padrão e comidinhas elegantes, de forma descomplicada, nada metido a besta, com a nossa cara”, define Rafael Thomaz. Vida longa para o Baixo.

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