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Academia Brasileira de Letras: tempos difíceis

A pandemia aprofundou o buraco nas finanças da ABL, impactou os imortais e emperrou a escolha de nomes para ocupar as quatro vagas em aberto

Por Cleo Guimarães
Atualizado em 16 jul 2021, 20h02 - Publicado em 16 jul 2021, 07h00
O salão nobre da Academia: vazio desde março do ano passado -
O salão nobre da Academia: vazio desde março do ano passado – (Rogerio Reis/Divulgação)

Era 12 de março de 2020, uma quinta-feira, dia do mais tradicional entre os muitos rituais da Academia Brasileira de Letras: o chá semanal que reúne seus integrantes no imponente salão do palacete Petit Trianon, uma réplica do edifício homônimo em Versalhes, doado pelo governo francês à ABL em 1923. Os imortais compareceram regiamente, mas o clima à mesa, em geral festivo, estava pesado. Naquela quinta, havia sido registrada a primeira morte por Covid-19 no país, e a informação de que tempos difíceis se avistavam foi anunciada pela pneumologista Margareth Dalcolmo, presente no convescote. Casada com o imortal Cândido Mendes de Almeida, 93 anos, ela pediu a palavra e, sem maiores delongas, avisou: “Vocês fazem parte do grupo de risco. É preciso sair daqui agora. Fechem a ABL e fiquem em casa”.

Até então, o novo coronavírus era coadjuvante nos papos, já que ainda não havia se alastrado em território nacional. O alerta de Dalcolmo fez Nélida Piñon, 84 anos, sentir um calafrio ao despedir-se dos colegas. “Tive o pressentimento de que iríamos nos afastar por muito tempo e de que alguns de nós não nos veríamos mais”, lembra a escritora, primeira mulher a presidir a casa, no final da década de 1990.

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Ela estava certa. Aquela foi a última reunião presencial dos acadêmicos até agora. Quatro deles morreram nesse período, que veio acrescido de uma crise financeira que abalou o caixa da ABL com intensidade poucas vezes vista em seus 124 anos de história. Com o esvaziamento do Centro, a Academia, que vinha se sustentando à base de aluguéis de imóveis próprios na região, ficou à míngua. O pior baque para o orçamento foi a debandada dos inquilinos do Palácio Austregésilo de Athayde, a joia da coroa no patrimônio da entidade.

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Anexo ao Petit Trianon, o antes movimentado prédio, com 300 salas comerciais em 29 andares, viu-se com quase dois terços do espaço desocupados, situação que se mantém mesmo depois da fase crítica do isolamento. “Esse maldito home office quebrou a gente”, ralha um dos imortais. Oficialmente, a instituição não comenta suas finanças, valendo-se de sua definição de “organização privada sem fins lucrativos” para silenciar sobre a questão. “Não temos por que dar essas informações, não somos um órgão público”, corta o assunto o historiador José Murilo de Carvalho, 81 anos, atual tesoureiro da entidade.

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Outros membros da casa também mostram desconforto ao falar de cifras, mas não negam: a situação é preocupante. “A ABL não tem recurso para mais nada, essa é a verdade”, afirma o também ex-presidente Cícero Sandroni, 86 anos. Por telefone fixo – meio de comunicação preferido da maioria dos imortais -, um dos intelectuais conta que os cerca de 3 milhões de reais que pingavam mensalmente na conta da entidade estão se esvaindo. “Se bobear, não chega a 1 milhão”, estima. Agravado pela pandemia, o processo de descapitalização, é bom lembrar, não vem de hoje. O quadro atual teria se iniciado na gestão do professor e pesquisador Domício Proença Filho, 85 anos, que antecedeu o hoje presidente Marco Lucchesi.

Classificado como “mau administrador” por um de seus confrades (“Ele autorizou uma despesa anual de 500 000 reais só de cooperativa de táxi, esbanjava muito”, confidencia esse imortal), Domício reage às críticas com espantosa sinceridade. “É verdade, a crise começou mesmo comigo”, assume. Ele pondera, porém, que o Palácio Austregésilo de Athayde já andava se esvaziando enquanto esteve no comando, entre 2016 e 2017, o que impactou significativamente na receita mensal. “Mesmo assim consegui entregar as contas equilibradas para o Marco”, afirma.

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Além de chacoalhar os alicerces econômicos da instituição fundada por Machado de Assis em 1897, a pandemia mexeu nas tradicionais engrenagens que levam à sucessão de suas quarenta cadeiras. As regras são claras: na primeira quinta-feira após a morte de um ocupante do assento, ele é declarado vago, em um passo a passo precedido pela “sessão da saudade”, homenagem em que os imortais se despedem dos colegas que se foram. Para se candidatar, basta ser brasileiro nato e ter publicado um único livro — de qualquer estilo, sobre qualquer assunto.

Da candidatura à eleição, são pouco mais de dois meses, janela em que os postulantes costumam se dedicar com mais afinco ao social na busca por apoio. Esse bem enlaçado rito foi subvertido na quarentena — e as cadeiras vazias foram se acumulando em proporção inédita. A morte de Marco Maciel, em 12 de junho, desocupou o quarto assento no seleto grupo de acadêmicos, somando-se aos deixados vagos por Affonso Arinos de Mello Franco (março de 2020), Murilo Melo Filho (maio de 2020) e Alfredo Bosi (abril de 2021).

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A sucessão que agora se arrasta se explica pelo rígido estatuto da casa: confinados, os imortais ainda não puderam realizar in loco as devidas despedidas dos colegas que partiram e, como o adeus formalizado é condição primordial para que a cadeira fique de fato disponível, deu-se o impasse. “Enquanto o Lucchesi não decretar a vacância, nós ainda consideramos vivos os seus ocupantes”, diz, didaticamente, Nélida Piñon.

A ideia de reunirem-se remotamente foi sendo protelada até a terceira cadeira vagar. Com a morte de Marco Maciel, o presidente foi convencido de que não dava mais para esperar — precisava desenrolar quatro sucessões. Os próprios imortais, cientes da idade avançada da turma, entendem que o tempo urge. Como falta à maioria intimidade com as ferramentas digitais, ficou acertado então que a “sessão da saudade” será virtual, selando a despedida coletiva aos quatro mortos, em meados de agosto.

Não que a espera pela abertura oficial da disputa tenha impedido a movimentação nos bastidores em torno das cadeiras em aberto, mas desta vez foi diferente, como vem sendo tudo nestes dias: os acadêmicos é que correram atrás de dois sonhos de consumo antigos da casa — Fernanda Montenegro e Gilberto Gil. Acostumados a ser bajulados por candidatos em busca de apoio, os imortais se revezaram na missão de convencer Fernanda e Gil a ingressar no “clube de amigos”, como se referem à instituição. Conseguiram. Salvo algum desvio de rota, os dois serão os próximos a envergar o fardão da ABL, a vestimenta-fetiche da posse. Com ramos de café bordados em fio de ouro sobre cambraia verde-oliva, a peça custa cerca de 70 000 reais e geralmente é bancada pelo governo do estado do novato, que paga ao alfaiate “oficial” da Academia.

Já houve quem quebrasse o protocolo. Eleito em 1990, Ariano Suassuna contratou uma costureira pernambucana para fazer o seu fardão e foi achincalhado pelo colunista social Ibrahim Sued. “Um horror, muito jeca a posse de Suassuna”, atirou o então porta-voz da high society. Já o compositor e filósofo Antonio Cícero, único representante da comunidade LGBT na ABL, usou em 2018 uma versão criada pelo marido, o figurinista Marcelo Pies. “Ficou igualzinho e custou um décimo do preço”, defende um confrade.

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A chegada de Fernanda Montenegro e Gilberto Gil já vem sendo celebrada internamente antes mesmo de se concretizar. “O ingresso de Fernanda será extraordinário”, anima-se Nélida Piñon. “Ela tem um pensamento intelectual e responde a todas as nossas demandas.” É consenso na ABL que a atriz e o cantor trarão um ar pop ao colegiado e ajudarão a torná-lo mais midiático. O movimento deve ocorrer durante a provável gestão de Merval Pereira — ao que tudo indica o jornalista do Grupo Globo será eleito presidente em dezembro. “Ele já está penteando o bigode para a posse”, entrega, com humor, um imortal.

No caso de Gil, o apoio de sua mulher, Flora, foi decisivo. “Ele vinha sendo convidado desde que era ministro da Cultura, e eu nunca me meti nessa história. Mas agora acho que seria bonito vê-lo na ABL”, orgulha-se ela. Um dos articuladores de sua candidatura, o poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin faz questão de exaltar o tanto que sua presença acrescentará. “A qualidade literária de Gil é admirável, são mais de 600 letras de um refinamento impressionante”, avalia, entusiasmado.

A aclamação de Gilberto Gil também pode ser vista como uma resposta da Academia às críticas pela falta de diversidade e representatividade negra na instituição, formada majoritariamente por homens brancos. O tema ficou em evidência depois da derrota da escritora mineira Conceição Evaristo, em 2018. Com seis livros publicados e um Prêmio Jabuti na estante, Conceição protagonizou uma “anticandidatura” ao não acenar com nenhum tipo de cortejo aos imortais. Era aclamada, elogiada, mas angariou apenas um voto na disputa pela cadeira que pertencera ao cineasta Nelson Pereira dos Santos. Perdeu, de lavada, para Cacá Diegues.

Comenta-se abertamente na ABL que Conceição “fez tudo errado” em sua campanha, ao apostar todas as fichas na força de petições on-line. Mais de 40 000 assinaturas pediam sua admissão no prestigiado rol — e só depois de ser informada do clamor popular é que a escritora formalizou a candidatura. “Ela nunca telefonou ou mandou um telegrama”, queixa-se Nélida. “Eu até gostaria de vê-la lá dentro, mas, além das qualificações intelectuais, nós apreciamos a boa educação e o bom humor”, alfineta.

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Para ocupar as outras duas cadeiras vagas, surgem com ímpeto nomes como o do neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho, do advogado Sergio Bermudes, do linguista Ricardo Cavaliere e dos escritores José Paulo Cavalcanti e Godofredo de Oliveira Neto. Uma costura interna vem sendo feita para que um desses assentos seja ocupado por “alguém das letras”— e Godofredo, professor da UFRJ e autor de romances como Grito, é hoje o mais cotado nessa seara. Para a segunda vaga, Paulo Niemeyer (“apesar de tímido”, segundo certos imortais) conta com padrinhos influentes e desponta na frente, mas Bermudes também está firme no páreo — e confiante. “Sinceramente, acho que tenho chance”, avalia o advogado. “Meu currículo corresponde às expectativas da ABL, mas a sorte beneficia os audazes”, completa, enigmaticamente, afirmando que ainda não foi atrás do apoio de nenhum acadêmico. Só o fará depois de oficializada a candidatura.

Outro aspirante à imortalidade, o ex-secretário de Educação de São Paulo Gabriel Chalita vem se articulando nas últimas semanas e angariou a simpatia de alguns intelectuais. “Ele não é bobo, tem muito traquejo e já lançou um livro com o padre Fábio de Melo dentro da própria ABL”, analisa uma expert em eleições da instituição. Para ela, Chalita, “um serial writer” — tem mais de quarenta livros de autoajuda publicados e 10 milhões de exemplares vendidos —, “não é carta fora do baralho”.

arte ABL

O que leva uma cadeira na ABL a ser tão concorrida? “Troca de ideias” e “bom ambiente intelectual” são alguns dos estímulos citados pelos candidatos. Mas há mais. Além do prestígio, os afagos financeiros são sempre bem-vindos: um salário fixo de 3 000 reais (chamado de “representação”), 750 reais a cada conferência de terça-feira, mais um jeton de 1 500 reais, às quintas, chegando a um total de até 12 000 reais mensais. No período pré-pandemia, o dinheiro era entregue dentro de um pequeno envelope antes de sentarem-se à mesa para degustar, em louças com detalhes azuis e talheres de prata, um cardápio variado de quitutes como mingau, bolinhos de bacalhau, empadinhas, frutas (a do conde, apesar de muito apreciada, não entra ali, para evitar engasgos com as sementes), bolos e sanduichinhos edwardianos — dois pães de fôrma sem casca recheados com frios. Para beber, sucos e chá preto da marca Royal Blend ou Twinings.

Os benefícios incluem ainda um ótimo plano de saúde (“Tem até remoção por helicóptero”, frisa um acadêmico), funeral e enterro no imponente mausoléu do Cemitério São João Batista — tudo extensivo a cônjuges. Pelo menos por ora, os paparicos fazem parte do passado. Sem os encontros e com o caixa em baixa, toda a remuneração foi suspensa por tempo indefinido, o que vem gerando insegurança entre os imortais. “Claro que o dinheiro está fazendo falta para alguns, nem sempre os escritores têm aposentadoria”, diz Cícero Sandroni. O que não deve mudar é o plano de saúde, considerado “intocável” pela diretoria, que leva em conta a idade de seus membros: há uma imortal centenária, nove nonagenários e a maioria já passou da faixa dos 80.

A recessão na Academia impôs uma nova era na casa de Machado de Assis — e paira a dúvida sobre quanto tempo vai perdurar o período de “readequação financeira”, se é que um dia vai acabar. “Estamos fazendo o que está ao nosso alcance e lutando pela recuperação”, fala o tesoureiro José Murilo de Carvalho, a quem foi confiada a tarefa de “limpar o terreno” para que Merval Pereira assuma a ABL com um mínimo de fôlego em caixa. O corte está sendo na carne. Além da suspensão das remunerações aos imortais, mordomias como a contratação de motoristas particulares passaram a ser restritas à alta cúpula, e gastos supérfluos foram limados do orçamento, entre eles viagens dos nobres representantes da Academia a eventos literários com tudo pago. “Houve um ajuste à realidade e medidas drásticas tiveram de ser tomadas”, ressalta Domício Proença. A mais dolorosa foi a demissão de 88 dos 125 funcionários da instituição, num “banho de sangue” (palavras de um imortal) sem precedentes na ABL.

Uma das dispensas causou especial comoção entre os intelectuais: com 47 anos de Academia, o bibliotecário Luiz Antônio de Souza foi incluído na lista dos demitidos em março de 2020. Morreu de Covid um ano depois. “Ele era a alma viva daquele lugar, conhecia profundamente cada escaninho, cada parte do acervo”, lembra Margareth Dalcolmo. Luiz era apontado como peça fundamental nas pesquisas que embasavam os discursos proferidos ali, por isso sua demissão foi recebida com surpresa na ABL. Viúva do bibliotecário, Gilda Alvarenga dispara: “Desde que o Lucchesi assumiu a presidência, os cortes começaram a ser implementados sem piedade, enquanto os imortais sugam a instituição até a última gota”. O retorno às atividades presenciais está previsto para outubro — e os planos de austeridade devem ser mantidos. Esse é o novo normal da ABL.

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