Armando Freitas Filho lança nova safra poética aos 80 anos
Admirado pela nova geração de escritores, poeta reflete sobre a passagem do tempo em Arremate: “Eu me sinto num trampolim”
Confinado em casa, na Urca, desde março, o poeta Armando Freitas Filho passa a maior parte do tempo em sua biblioteca de quase dois mil livros. Aos 80 anos, completados em fevereiro, Armando faz, no máximo, pequenos circuitos pelo jardim até o quintal. “Fazer 80 é como fazer 100. Eu me sinto num trampolim”, afirma. Desde o início da pandemia, as caminhadas pela orla foram abolidas, mas o poeta ainda encontra inspiração na paisagem carioca. Espremido entre a unha do Pão de Açúcar, como gosta de dizer, e o mar, Armando mergulha na leitura de novos autores, dias antes do lançamento de seu novo livro, Arremate (Companhia das Letras), que chega às livrarias nesta semana.
Na obra, o autor intensifica o trabalho sobre temas clássicos, como a passagem do tempo e a finitude. Certas vezes, Arremate parece um tratado sobre uma vida dedicada à poesia. “Não há mais tempo/de ler algo de largo fôlego./ Nem de reler o mar de Melville./ As metáforas de mar estão cansadas/ mas as ondas não cansam/ de bater no paredão de cada dia”, avisa o poema Entreato. Tons azuis são retomados em Viagem e Testamento: “Estou de saída./ Está na hora. Amanhã é feriado/ou ferido?/Estou entre o abraço/e o adeus sem aceno”.
Para Armando, a casa na Urca, onde mora há 51 anos, é uma fortaleza. Os versos são trabalhados durante horas a fio nos cômodos revestidos por madeiras que criam um ambiente intimista. O processo rigoroso finda mediante o cansaço do artesão em sua oficina. O poeta classifica sua escrita como trifásica: primeiro escreve à mão, depois na máquina Lettera 22 e, por fim, digita no computador.
+De: Nélina Pinõn / Para: Clarice Lispector
No momento, ele está absorto na leitura de poetas mais novos, como Edimilson de Almeida Pereira e Prisca Augustoni. Os dias também são ocupados com audições de música erudita, hábito adquirido pela família. Antes da poesia e da música, o Fluminense foi sua primeira paixão, mas, hoje, Armando diz não ter mais saúde para acompanhar os jogos do tricolor. Cristina Barreto, sua mulher e companheira de todas as horas, narra as partidas do time para o poeta, que, agoniado, fica longe da tevê, em outro lugar da casa.
Considerado um dos principais poetas do Brasil, Armando demonstrava interesses precoces na infância. Filho de um procurador de Justiça e de uma dona de casa, aprendeu a ler aos 5 anos. O pai chegava do fórum e ensinava o menino a ler com edições do jornal A Noite, que circulou entre 1911 e 1957. Na escola, oferecia redações aos colegas que tinham dificuldade com a escrita. Aos 16, teve a sua descoberta do mundo ao receber do pai um exemplar de O Fazendeiro do Ar, de Carlos Drummond de Andrade. “Para mim, Drummond é Deus”, afirma.
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Na mesma época, encantou-se pela obra de Manuel Bandeira. Assim como fizera com Drummond, ouviu o itinerário lírico do pernambucano em gravações de disco. Aos 22, o jovem tímido, acompanhado do pai, conheceu Bandeira em seu apartamento na avenida Beira Mar. Pouco depois, encontrou Drummond na livraria São José, também no Centro. As dedicatórias são guardadas com o zelo de quem tem a posse das sagradas escrituras.
Para a formação intelectual do poeta, a figura do professor e crítico literário Antonio Candido foi essencial. “Eu não fiz faculdade. Sou formado em Antonio Candido”. O escrete de referências é completado com o poeta João Cabral de Melo Neto, com quem teve relação mais estreita. A partir dos 26 anos, Armando frequentou a casa do autor de Morte e Vida Severina (1955). Ele rechaça a fama de ranzinza de João Cabral: “As pessoas dizem que ele não gostava de conversar. Modéstia à parte, ele gostava de conversar comigo”.
A criação de Armando aproxima-se, em alguns momentos, de um dos objetivos de João Cabral: fazer uma poesia crítica. Ainda que seja um processo solitário, a elaboração dos poemas está sempre em contato com o mundo. Dois Pares de Botas, incluído em Arremate, traz menções a Van Gogh e Charlie Chaplin.
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A obra de Armando começa em 1963 com o lançamento de Palavra. Na época, o poeta participou de um movimento literário chamado Instauração Práxis, que fazia oposição às ideias do Concretismo. Encabeçado por Mário Chamie, o poema práxis buscava substituir a “palavra-objeto” pela “palavra-energia”. Armando permaneceu no movimento até Dual, concebido dois anos depois.
Pouco a pouco, construiu uma personalidade tragicômica. Somaram-se à gagueira o comportamento dramático nos acontecimentos mais banais da vida e um grande medo de contrair doenças. Armando revestiu o cotidiano com manias. Reprova, com veemência, comidas coloridas. Aliás, todas as refeições devem ser preparadas com pouquíssimo sal e tempero. O poeta fez carreira como funcionário público. A partir de 1966, trabalhou em instituições ligadas à cultura, como Fundação Casa de Rui Barbosa, Ministério da Educação e Cultura (MEC) e o Instituto Nacional do Livro (INL). Ele não se entusiasma ao lembrar da época de pesquisador e assessor. Preferiu os livros às pessoas.
Nos anos 1970, Armando conheceu a poeta Ana Cristina Cesar, melhor amiga, morta em 1983, de quem sente saudades: “Para mim, ela morre até hoje”. Um dos primeiros encontros ocorreu em uma das pontes sobre o rio Rainha, no campus da PUC-Rio, onde a jovem estudava. A década consagrou a Poesia Marginal, da qual Ana C. fez parte, caracterizada pelo interesse em temas cotidianos e uma dicção menos solene, com os poemas impressos em mimeógrafos para driblar a censura.
Armando também estabeleceu diálogo com Chacal e Cacaso, poetas dessa geração, mas nunca cedeu ao modo como escreviam poesia. Não se interessou pelo poema-piada, por exemplo. “Eu não sou uma pessoa que ri. Tenho rugas desde muito cedo”, justifica. O intercâmbio intelectual com Ana C. foi de grande importância para Armando: “Ana me ensinou a escrever sobre a minha vontade, a não escrever copiando os outros”.
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Com quase vinte livros publicados, Armando escreveu obras de grande relevância para a literatura brasileira. O poeta entregou-se aos temas existenciais a partir de Marca registrada (1970) e, com a publicação de 3×4 (1985), conquistou o prêmio Jabuti. O fatalismo presente em Arremate já aparecia, por exemplo, nos versos finais de Nu de verão subindo a escada, do livro Cabeça de Homem (1991): “que o mar e o céu/se encontrem decididos/depois de tanto ensaio/a fundo perdido no horizonte.”
Armando escreve como quem diz “tenho um corpo, logo existo”. “O tempo para no espaço e passa./O corpo corre, inominável, inumerado/sem ter quem cure o coração que morre”, diz Noctívago, em Raro Mar (2006). Como observou Antonio Candido, o corpo, na poética de Armando, não está apenas ligado ao ser humano. Afinal, o autor preocupa-se com o desenho do poema na página.
Para as novas gerações, Armando é associado, com frequência, à figura de um mentor. Sempre esteve atento à produção dos jovens, recebendo autores novatos em famosos jantares na casa da Urca. Laura Liuzzi, de 35 anos, o conhece desde que nasceu. Foi o primeiro poeta com quem teve contato. Lembra-se do dia quando, na livraria Timbre do Shopping da Gávea, se espantou com uma combinação esdrúxula de palavras, no verso “Tigre, Xerox, Terror”, contido em De cor, obra lançada por Armando em 1988. Desde então, ela capta dicas preciosas do escritor veterano.
Primeiro, descobriu que poesia é exercício. Depois, aprendeu a necessidade de manter certa distância das principais referências literárias. Laura também não se esquece de outro ensinamento: todo poema tem um verso-pilar, um verso capaz de sustentar a poesia, explica a autora de Calcanhar (7Letras, 2010), Desalinho (Cosac & Naify, 2015) e Coisas (7Letras, 2016). “Eu-lírico, para mim, é uma ideia muito questionável. Nunca quis falar de mim, você tem que estar aberto. Um sujeito entre sujeitos”, explica Laura. No cinema, além de ter trabalhado com o documentarista Eduardo Coutinho, juntou-se a Walter Carvalho na realização do filme Manter a Linha da Cordilheira Sem O Desmaio da Planície (2016), uma espécie de cinebiografia de Armando.
Outra discípula do poeta é Alice Sant’Anna, de 32 anos, que se afirma na literatura brasileira com uma voz singular desde o lançamento de Dobradura (7Letras, 2008). Em 2012, escreveu Pingue-Pongue (edição independente) com Armando. Um ano depois, o poema Rabo de Baleia, que compõe o livro homônimo, se tornou um hit. Uma de suas obras mais curiosas é Ilha da Decepção (2014), uma espécie de diário de bordo escrito em versos durante uma viagem à Antártica. “A maior lição de Armando é a generosidade. Normalmente, um poeta do tamanho dele não está interessado em ler poetas novos”, diz Alice.
A autora conheceu Armando quando tinha 15 anos. Na adolescência, lia Ana Cristina Cesar, Ferreira Gullar e Sylvia Plath, além de outros nomes da coletânea 26 poetas hoje, lançada em 1976 por Heloísa Buarque de Hollanda. Seu pai, o fotógrafo Alexandre Sant’Anna, foi até a casa da Urca fazer fotos do escritor e levou a filha para conhecê-lo. Na semana seguinte, já haviam se tornado amigos. Desde então, Alice fala com Armando quase todos os dias.
Na quarentena, o mentor pratica o próprio ensinamento de que poesia é exercício tentando cumprir uma outra ambição de João Cabral de Melo Neto: escrever um poema por dia. Caso falhe, contenta-se em ler alguns versos, enquanto observa o tempo aproximar céu e mar.
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* Gustavo Zeitel, estudante de Jornalismo da PUC-Rio, sob orientação da professora Itala Maduell e revisão final de Veja Rio.