E Deus criou a tampa de rosca
Um texto que escrevi há alguns anos enquanto estava longas horas insone dentro de um avião voltando da Austrália

“A ambição me leva a ir não só mais longe do que qualquer outro homem antes de mim já foi, mas até tão longe quanto creio ser possível a um homem ir” – Do diário do capitão James Cook*.
A Austrália é um país distante, imenso e pouco habitado. Produz ótimos vinhos e guarda muitos segredos. Fiz uma longa viagem por lá. Visitei todas as regiões importantes no cultivo da vinha, fui a lugares ermos e conversei com os personagens curiosos, além de provar centenas de vinhos.
O que me motivou a esta aventura foi a leitura do diário do Capitão Cook*, da marinha inglesa, que em 1770 descobriu a Austrália. Cook menciona o vinho em vários trechos de seu relato. Segundo ele, o nobre fermentado já era produzido lá muitos séculos antes da chegada dos europeus. De seu convívio com os povos locais, o inglês relatou várias lendas como a de que o aborígene Wino-Wino** teria inventado o vinho. Cook conta também ter provado um vinho quase mágico feito a partir da vinha mais velha do planeta, com 10 mil anos de idade.
Segundo ele “esta planta guarda em sua memória toda a história da humanidade. Seu caule é tão grosso que são necessários 10 homens para abraçá-lo. Suas raízes tão profundas que as ramificações chegam a todos os cantos do planeta, passando pelo centro da terra e trazendo na seiva uma síntese gustativa de todos os terroirs do mundo. Esta magnífica planta frutifica uma única vez a cada século e gera uvas suficientes para a produção de apenas 375ml de vinho, envasado e arrolhado em pequenas garrafas de vidro opaco.”
Foi atrás desta preciosíssima demi-bouteille que encarei mais de 20 horas de avião rumo a “the land down under”. As palavras de Cook não saíam de minha mente: “Este néctar sagrado tem o poder de dar a vida eterna. Ilumina os pensamentos com grande sabedoria, mas também causa tal estado de êxtase que pode levar-te à loucura. Sua cor profunda guarda um sabor rijo, porém amistoso, e a riqueza dos aromas da terra e de todos seus frutos e especiarias. Saberás quando o encontrou quando ouvirdes música divina ao prová-lo. Bebê-lo é conversar com Deus. Procurar suas raras garrafas uma busca solene e incessante.”
Para encurtar a história e matar sua curiosidade, digo logo: achei a tal garrafa no free shop de Sydney! Custou absurdamente caro, mas parcelei no cartão e não me preocupei, já que teria a vida eterna para pagar.
Com grande emoção saquei a rolha e provei o vinho… que decepção! Estava bouchonné!
É por isso que a versão australiana da Bíblia diz: “e no 8º dia, Deus criou a screw cap***”.
*Esta obra é pura ficção. James Cook (27 de Outubro, 1728 – 14 de Fevereiro, 1779) realmente escreveu um diário, mas que eu jamais li.
** É comum a repetição de vocábulos nos idiomas aborígenes da Austrália. E também é comum que os australianos em geral, como gíria, encurtem as palavras colocando a terminação “o”, deste modo “president” vira “preso”. Bem que no Brasil poderia virar mesmo…
***tampa de rosca