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Vinoteca

Por Marcelo Copello, jornalista e especialista em vinhos Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Marcelo Copello dá dicas sobre vinhos

Filoxera, a PANDEMIA do vinho

A Filoxera atacou os vinhedos de todo o mundo no século XIX e mudou a história do vinho. Podemos aprender olhando o passado

Por Marcelo Copello Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 13 abr 2020, 18h03 - Publicado em 11 abr 2020, 09h43
Filoxersa
Filoxera em cartum do século XIX (Edward Linley Sambourne/Divulgação)
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Como muitos profissionais do vinho, nas últimas semanas eu tenho ministrado cursos, aulas, degustações etc, no ambiente on-line. Semana passada um dos temas que abordei para foi a Phylloxera, ou Filoxera, uma pandemia que assolou o mundo do vinho no século XIX. Enquanto falava aos meus alunos a ficha caiu. A semelhança como o momento que vivemos é grande! O texto abaixo foi extraído de meu livro “Vinho & Muito Mais” (Editora BestSeller, 2013). Acho que vale a pena a leitura, podemos aprender com o passado. 

“Vou fazer cair o dilúvio sobre a terra, uma inundação que exterminará todo ser que tenha sopro de vida debaixo do céu. Tudo que está sobre a terra morrerá.” Bíblia, Gênesis (6, 17).

Uma música de suspense toca e subitamente mortes misteriosas começam a acontecer, sem causas aparentes. O terror se espalha por todo o planeta. As mortes seguem, inexplicáveis, e pavorosas, causando devastações irrecuperáveis. Fala-se em cólera divina ou maldição demoníaca e religiosos são convocados para exorcizar o mal. Enquanto isso um cientista em seu laboratório, entre tubos de ensaio e microscópios, desvenda o mistério e salva o planeta!

A “sinopse” acima não é de uma obra de ficção, mas aconteceu de verdade (com exceção possivelmente da música de suspense). As mortes foram de videiras, o pavor foi bem real e alcançou os 4 cantos do planeta.

No universo de Baco, se a Filoxera fosse um filme certamente seria uma película de terror dos mais pavorosos. Mas porque falar de um fato ocorrido há um século e meio e do qual pouco de fala hoje? Porque o ataque da Filoxera foi simplesmente o capítulo mais marcante de toda a historia do vinho, que deixou cicatrizes profundas e ainda sentidas em todo o planeta. Além disso, porque esta praga ainda existe e ataca e, principalmente, porque foi sobre os destroços deste cataclisma que se ergueu o mundo do vinho como o conhecemos hoje. Assim, para melhor entender cada taça que degustamos é fundamental ler como aconteceu, passo a passo, a eno-catástrofe causada no século XIX por este um minúsculo ser.

Hoje, mais de um século depois do fenômeno é difícil acreditar que esta catástrofe, de proporções bíblicas, realmente tenha acontecido. A “ficha caiu” na primeira vez que visitei o Douro e me deparei com um “mortório”*. Desde então pude notar, em absolutamente todas as regiões vinícolas que visitei em vários continentes, que a Filoxera foi um divisor de águas em suas histórias. A historia do vinho se escreve “a.F.” e “d.F.”.

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Mas o que é Filoxera? Como vive este inseto e como ataca a vinha? Como aconteceu passo a passo o eno-cataclisma causado por este um minúsculo ser no século XIX?

O que é a Filoxera?

O vocábulo filoxera é usado indistintamente para designar o inseto e a praga causada pela infestação deste em vinhedos. Phylloxera vastatrix,  Dactylosphaera vitifoliae, Viteus vitifolii ou simplesmente Filoxera é um tipo de pulgão, cujo tamanho varia de 0,3mm a 3mm de comprimento conforme a fase de seu complexo ciclo de vida.  A Filoxera ataca várias partes da videira em diversos momentos do ano.

A praga destroi as folhas da planta (que ficam amareladas prematuramente e caem), diminundo sua capacidade de fazer fotosíntese, mas o que geralmente mata a planta é o ataque do inseto à suas raizes. O pulgão suga às raizes e as “feridas” abertas sofrem a ação de fungos que acabam causando o apodrecimento das raízes – a verdadeira causa mortis da videira

A Vitis Vinifera e a Filoxera

A Vitis Vinifera é apenas uma das 60 espécies de uva no planeta, mas é a única que gera os vinhos finos. Todas às centenas de castas que conhecemos (Cabernet Sauvignon, Chardonnay etc), vêm de apenas uma espécie, o que tem seu lado ruim, já que a variedade genética é limitada aumentando a vulnerabilidade a doenças. A Vitis Vinifera é também conhecida como vinha européia, pois é a mais comum no continente europeu e teria vindo do oriente médio.

Em contraste a América do Norte possui uma grande diversidade de espécies autoctonas, de uvas não viníferas, que geram vinhos inferiores, que no Brasil designamos comumente de “vinhos de garrafão”.

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Para entender como se deu o ataque desta praga em vinhedos de todo o mundo é importante saber que, primeiro, os danos provocados pela Filoxera nas vinhas dependem da susceptibilidade da espécie de videira aos ataque do pulgão. Segundo, a Filoxera existe a séculos na América do Norte, mas só chegou a Europa (e de lá para outros continentes), no séxuloXIX, como veremos adiante. Ou seja, enquanto a Vitis Vinifera nunca havia tido contato com o pulgão e era (e ainda é)  totalmente vulnerável, as espécies de uvas norte americanas co-evoluíram com o pulgão por séculos adquirindo grande resistência ao mesmo, tornando-se quase imunes.

A História de uma calamidade de proporções mundiais

O ataque da praga na Europa aconteceu de forma semelhante às epidemias levadas por navegadores espanhóis às suas colônias americanas. Povos aborígenes foram dizimados por vírus inofensivos aos europeus.

É fundamental entender o contexto em que se deu a Filoxera. No final do século XIX a economia européia era movida a vinho: nada menos que 80% da população da Itália vivia direta ou indiretamente do vinho. Na França cerca de 20% da receita do estado vinha do vinho e 30% das pessoas trabalhavam diretamente com vinho. Em Portugal o vinho do Porto era o item número 1 na balança comercial do país.

Com a colonização da América os europeus tentaram cultivar a Vitis Vinifera no mundo novo para lá fazer vinhos. Todas as tentativas fracassaram, pois as vinhas morriam sem explicação. Não se sabiam as causas, mas provavelmente tratava-se da Filoxera e do Oídio (outra praga terrível que também viria a atacar a Europa). Tentaram então fazer vinho com as vinhas locais, mas o resultado era intragável. Os vinhos elaborados a partir de vinhas não viníferas possuem um típico gosto animal desagradável chamado de “foxy” (derivado da palavra “fox” – raposa). Como caminho natural para resolver este problema levaram mudas de vinhas americanas para a Europa para estudá-las, levando junto a praga…

Conta à história que um certo Monsieur Borty recebeu vinhas americanas, vindas Nova York, e cheio de boas intenções plantou-as em seu quintal, no Languedoc – sul da França, em 1862. Este marchant de vinhos, que hoje deve arder no inferno, notou que as demais vinhas de sua plantação (de Vitis Vinifera) começaram a morrer. Cerca de cinco anos depois todo o sul da França estava devastado. Em uma década a produção de vinhos da França havia caído a um terço e a calamidade já era global.

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Em poucos anos a Filoxera atingiu toda a França, a última região a ser atacada foi Champagne, em 1890. O Douro foi a primeira região portuguesa com registros de Filoxera, em 1865. Em 1875 já havia Filoxera na Austrália, em 1880 na África do Sul e em 1885 a praga chegou ao norte da África, na Argélia e de lá atacaria vinhedos na Tunísia e Marrocos. O século XIX chegou ao fim com o mundo de Baco destroçado e a produção mundial seriamente comprometida.  Muitos vinhedos foram extintos para sempre, muitas castas desapareceram, dando lugar a outras. A geografia do vinho estava mudada para sempre.

Pânico e tentativas curiosas

No início a morte das vinhas era um mistério e o pânico se instalou. Mesmo depois que um botânico de Montpelier, no sul da França, Jules Émile Planchon identificou o problema como sendo um inseto quase invisível a olho nú, não se sabia como conter a praga e métodos curiosos foram utilizados, alguns entrando para o folclore da bebida. Métodos curiosos foram utilizados para tentar conter a praga. Quais? Este será o tema de amanhã neste site!

Alguns viticultores começaram a plantar vinhas americanas, que não morriam, mas o vinho era resultante, como já sabemos, era de qualidade inferior.

A Cura

Em Montpelier desenvolveram um processo que nao chega a ser a cura propriamente dita da praga, mas um paliativo. Após muitas experiências descobriram em 1874, que ao enxertar a Vitis Vinifera sobre uma vinha americana era possível produzir vinhos finos em uma planta resistente a praga. Apenas a raiz da planta é da vinha americana e sobre ela cresce uma Vitis Vinifera.

No inicio havia muita resistência em usar este método, primeiro pois temia-se pela qualidade do vinho e depois havia grande dificuldade de conseguir vinhas americanas, já que era proibido importá-las. Este método foi e é “a cura” adotada em todo o mundo até hoje.

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A situação atual, as exceções e casos raros

Não se descobriu até hoje um controle eficaz da praga em si. A Filoxera ainda existe e ataca. Os cientistas não sabem todos os pormenores das diferenças entre entre a Vitis Vinifera e as espécies americanas, para determinar com os motivos que levam uma resistir a praga e a outra não. Sabe-se que a praga não ataca em terrenos arenosos, motivo pelo qual alguns vinhedos resistiram, como por exemplo na região de Colares, em Portugal, próxima a Lisboa. O Chile é também um caso sempre citado, pois a Filoxera não chegou até lá. Os motivos são as proteções naturais, já que o Chile é uma “ilha” entre a Cordilheira dos Andes, o deserto de Atacama, a Antártida e o oceano Pacífico. Além disso atribui-se ao solo chileno rico em cobre e outros minerais, uma proteção natural. A Sicilia, com seus terrenos vulcânicos, de consistência muito fica, também abriga alguns vinhedos “virgens”, intocados pelo maligno inseto.

As vinhas exertadas são chamadas de “cavalo”, já que uma vinha á plantada sobre a outra. As vinhas com raízes originais européias, sem o artifício da enxertia, são chamadas de vinhas de “pé franco”. Além dos citados acima existem espalhados pelo mundo alguns exemplos isolados de vinhedos “pé-franco”. É o caso do notório vinhedo “Nacional” da Quinta do Noval, no Douro, ou o a Herdade do Mouchão, no Alentejo. O fabuloso Thermantia 2005 é outro exemplo, elaborado na região espanhola de Toro a partir de um vinhedo préfiloxérico de 140 anos de idade.

Pode-se hoje perfeitamente plantar um vinhedo em “pé franco” em qualquer lugar do mundo, mas o risco de perdê-lo por um ataquie da Filoxera é grande. E mesmo as vinhas em “cavalo” podem ser atacadas se o porta enxerto (o tipo de vinha americana que fornecerá suas raízes a planta) não for bem escolhido. É bom lembrar que a Filoxera como todas espécies que habitam o planeta, pode evoluir e sofrer mutações naturais, e um porta exerto hoje resistente a praga pode no futuro não o ser mais.

Na Califórnia nos anos 1960 e 1970 plantou-se muito usando o porta enxerto conhecido como “AXR#1”, que era resistente a Filoxera, mas que veio a sucumbir ante a um novo biotipo do pulgão como “biotipo B”, que dizimou muitos vinhedos, que tiveram que ser replantados com novo porta enxerto

*vinhedos do Douro atacados pela Filoxera final do século XIX e abandonados desde então, que podem ser vistos ainda hoje, espalhados pela região.

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