“…as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração. Com esta, ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas” (O Perfume – Patrick Süskind).
Aroma de rosa
Podemos dizer que o olfato é o “sentido perdido”, relegado a um ostracismo de séculos. Este atalho a sentimentos puros e profundos caiu em desuso pelo homem moderno. Um resgate dos cheiros, no entanto, tem acontecido nas últimas décadas, e o vinho é um dos agentes deste revigoramento de nossos narizes. A bebida de Baco é um elemento importante de filosofias contemporâneas como o hedonismo, o esoterismo e o culto à vida saudável.
Também se pode dizer que, com as modernas técnicas de elaboração e consumo da bebida (fermentação a frio, engarrafadoras automáticas, uso de leveduras selecionadas, maior higiene e esterilização das cantinas, movimentação no mosto por gravidade, novas técnicas de poda e condução das vinhas, adegas climatizadas, termômetros digitais, taças high-tech), os vinhos, especialmente os brancos, nunca foram tão perfumados como hoje.
Tentar descrever verbalmente as fragrâncias de um vinho se assemelha a um mergulho em águas profundas de um mar de sensações e prazeres mudos e indescritíveis. Exprimir através da linguagem o que o nariz percebe em uma taça é tarefa árdua, uma herança daninha da insignificância da olfação no Ocidente dos últimos séculos.
Apresentar o vinho ao nariz talvez seja o estágio mais instigante de uma degustação. Os preceitos básicos para qualquer tipo de prova de vinhos são: taça e temperatura adequadas e, no que diz respeito à análise olfativa, é necessário utilizar a memória e a imaginação. Deve-se fechar os olhos, inspirar e procurar ver com o nariz. Depois, comparar os aromas percebidos com aqueles que estão armazenados no banco de dados de cheiros do cérebro.
Para os que possuem um repertório limitado, não há motivo para preocupação, o tempo e prática ampliarão esta lista até que atinja milhares de fragrâncias catalogadas. É importante dar nome a cada odor identificado, desta maneira, ele ficará registrado para sempre.
Em uma análise mais técnica dos aromas, vários aspectos são verificados:
● Sanidade: se o líquido não cheira a nada desagradável ou estragado, como o que chamamos de bouchonné (rolha), por exemplo.
● Intensidade ou ataque aromático: é a quantidade de aroma, o impacto do líquido em nossas narinas.
● Complexidade: a variedade de cheiros, ou quantidade de diferentes essências que podem ser reconhecidas.
● Reconhecimento: identificar e nomear os aromas que compõe o aroma final.
● Qualidade: item subjetivo, ligado ao gosto pessoal do degustador.
● Originalidade: considerando alguns odores como banais e outros como raros e intrigantes.
● Persistência: quanto tempo a sensação permanece em nosso olfato.
● Evolução: aromas evoluem à medida que o líquido é aerado. Com alguns minutos ou até algumas horas na taça, aromas novos podem surgir.
● Aroma de boca: as impressões retronasais são percebidas através da comunicação interna da boca com o nariz.
O aroma de boca é diferente do de nariz, pois a saliva aquece e intensifica a evaporação.
Podemos ainda agrupar os aromas da seguinte maneira, citando alguns exemplos:
– Aroma de noz
– Florais: acácia, rosa, violeta, flor de laranjeira, tília, narciso, jasmim.
– Frutas cítricas: limão, laranja, maçã verde, tangerina, abacaxi.
– Frutas vermelhas: amora, cassis, morango, framboesa, groselha, cereja, ameixa.
– Frutas amarelas: pêssego, damasco, manga, pêra, melão.
– Frutas naturalmente secas: amêndoa, avelã, noz.
– Frutas secas, cristalizadas, em calda e geléias: ameixa seca, figo seco, uva passa, geléia de amora.
– Especiarias: pimenta do reino, noz moscada, anis, cravo, canela.
– Vegetais: feno, musgo, capim, grama cortada, pimentão verde, azeitona, tabaco.
– Animais: couro, pelica, urina de gato, âmbar, almíscar, suor.
– Herbáceos: hortelã, sálvia, aneto, orégano, manjericão, alecrim, pinho, manjerona.
– Minerais: pedra de isqueiro, petróleo, terra.
– Tostados: café, chocolate, caramelo, pão torrado, amêndoa torrada.
– Químicos: asfalto, vinagre, gás de cozinha.
– Outros: defumado, mel, manteiga, baunilha, cedro, carvalho, cogumelo, mofo, álcool, levedura, leite, tartufo, cascas de pão, enxofre.
Os aromas de um vinho também podem ser classificados em: primários, secundários e terciários. Os primários são os provenientes das variedades de uva com as quais o vinho foi feito, (Cabernet Sauvignon ou Chardonnay, por exemplo).
Os secundários são os aromas que a bebida adquiriu em elaboração (fermentação e amadurecimento em barris de carvalho, por exemplo). Os terciários são os perfumes que o líquido ganhou ao longo de seu envelhecimento em garrafa. A palavra bouquet se refere apenas a aromas terciários, ou seja, este termo se aplica somente a exemplares envelhecidos.
Os aromas primários são os mais frescos, normalmente do grupo dos frutados, florais, vegetais, herbáceos e minerais. Os secundários ficam no grupo das madeiras, manteiga, tostados, leveduras, enxofre etc. Os terciários são mais etéreos e fechados, como os odores animais, químicos, mofo e tartufo.
Aroma de pimenta-do reino
Utilizando criteriosamente o olfato, pode-se dizer muito a respeito de um vinho: sua idade, em que país/região foi produzido (se era uma região quente ou fria, chuvosa ou seca, por exemplo), sua assemblage (os tipos de uva que o compõe), como foi produzido (que tipo de fermentação sofreu, se passou por estágio em madeira e em que tipo de madeira).
Essências de banana, por exemplo, são típicos de um Beujolais Noveau; pedra de isqueiro nos lembra um Chablis; cheiro de petróleo é característico dos Rieslings da Alsácia; pimentões verdes são associados à Cabernet Sauvignon; perfume de pêra é comum em Processos; os vinhos portugueses feitos com a cepa Touriga Nacional nos remetem a violetas; enquanto Chadonnays quase sempre trazem abacaxis frescos ou em calda entre seus aromas.
É possível, também, identificar, usando apenas o olfato, se o vinho amadureceu em barris de carvalho, por seu cheiro de baunilha e de tostados. Aromas de manteiga indicam que um vinho branco sofreu uma desacidificação (a fermentação malolática). O perfume de frutas tropicais indica que a bebida sofreu uma fermentação mais longa e a frio.
A alma de um vinho, sua impressão digital, o que realmente distingue um exemplar de outro, é seu aroma. O mundo nunca viu tantos degustadores profissionais ou amadores como hoje.
Os cursos de degustação pululam e nestes um dos pontos focais é o olfato. Por isso podemos concluir que o nobre fermentado está revolucionando o cheirar, trazendo de volta um sentido abandonado há tempos.