Conservantes, amigos ou inimigos do vinho?
Não faltam assuntos polêmicos no universo de Baco e este é o do momento
Não faltam assuntos polêmicos no universo de Baco e este é o do momento.
O crescente movimento em torno dos vinhos ditos naturais traz à baila um composto químico, o SO2. Para os “naturebas”, o dióxido de enxofre, ou anidrido sulfuroso, é o demônio que deve ser exorcizado. Para os enólogos “convencionais”, o sulfuroso (usado em quantidades regulamentadas) é o maior amigo do vinho, interrompendo seu caminho natural, que é virar vinagre.
Essencialmente, o vinho é química/ciência, mas o que apreciamos nele é a emoção que proporciona. Isso é pessoal e portanto transcende qualquer ciência. Tentarei explicar de forma sucinta os usos e os porquês do SO2, para que cada um tire suas próprias conclusões, com razão e emoção, que são inseparáveis quando o assunto é vinho.
Fui também buscar a opinião de dois especialistas renomados, o italiano Josko Gravner, um dos enólogos mais cultuados da atualidade, e Juliano Perin (enólogo da Chandon e ex-presidente da Associação Brasileira de Enologia).
Como é usado o SO2?
O sulfuroso age como microbicida e é normalmente usado em cinco estágios da elaboração de um vinho:
1-No campo (na forma de sulfato de cobre), para proteger as plantas de pragas como o míldio e o oídio. A quantidade deve ser limitada, para evitar a acidificação do solo. Esta prática é permitida em cultivos orgânico e biodinâmico, por exemplo.
2-Assim que as uvas são colhidas (em caso de colheita mecânica), senão no esmagamento e início da fermentação. Esta dose tem que ser suficiente para matar os micróbios presentes no suco de uva, mas não forte demais para retardar a fermentação. Hoje, cada vez menos se usa sulfito, neste momento, pois a qualidade das uvas é crescente.
3-Depois da fermentação malo-lática. Se a malo-lática for espontânea (normalmente mais longa) e não tiver SO2, a brettanomyces e outros microrganismos podem se formar, como histamina (que são elergênicos), e mesmo cancerígenos como carbamato de etila e ocratoxina.
4-Ao colocar os vinhos em barricas ou tanques para amadurecimento para proteger o vinho dos efeitos da oxidação durante sua maturação.
5-Ao engarrafar para proteger o vinho da oxidação e dar-lhe durabilidade. Esta é a etapa na qual o uso do sulfuroso se faz mais importante.
Porque não usar SO2?
Os adeptos dos vinhos naturais pregam a não adição de leveduras (assunto que será tema de outro artigo) e o não uso de SO2, ou seu uso apenas no momento do engarrafamento, em quantidade quanto mais baixa melhor.
Os motivos são certamente os mais louváveis e antes de mais nada filosóficos: busca da pureza e da saúde. Além disso, por acharem que de fato os vinhos ficam com gosto melhor sem o tristemente afamado enxofre.
Aqui vale uma nota histórica. Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo entrou em uma espiral de produção e consumo, em que atender a crescente demanda era o foco – a quantidade era o obstáculo a ser vencido. Neste contexto, qualquer técnica que maximizasse e garantisse a produção era buscada. No caso do vinho isso foi traduzido em mecanização, organização grandes cooperativas, busca de técnicas para aumentar o rendimento dos vinhedos e o uso de químicos que garantissem o produto. Esta realidade foi bem evidente entre as décadas de 1950 e 1970.
A partir dos anos 1980, o paradigma foi mudando em direção da busca da qualidade, da saúde e da não agressão à natureza.
Voltando ao SO2, hoje técnicas e equipamentos modernos tornaram menor a necessidade de seu uso. Os padrões de higiene aumentaram desde o vinhedo até a cantina. As uvas chegam mais sãs à vinícola e em em muitos casos a madeira foi substituída pelo inox, que é bem mais limpo.
Juliano Perin nos lembra que “o SO2 é alergênico, portanto devemos usar as quantidades mínimas, que não causem prejuízos ao consumidor. É perfeitamente possível vinificar sem SO2. O problema é depois da vinificação, na hora de engarrafar, quando o SO2 é fundamental para a manutenção do vinho e de sua estabilidade”.
Vale lembrar apenas que nem todos os vinhos são candidatos a ser SO2 free. Geralmente os melhores candidatos são os que têm cor mais escura e mais taninos. A tendência, contudo, é que cada vez menos sulfuroso seja necessário. Estamos ainda engatinhando no desenvolvimento de técnicas que permitam o uso de cada vez menos SO2.
Fundamental para o crescimento consistente da categoria “vinhos naturais” é que sejam certificados, pois se a filosofia se baseia no método de elaboração, este precisa ser atestado.
Porque usar SO2?
Ao não colocar SO2 deixamos o vinho microbiologicamente instável, e suscetível a desenvolver bactérias e aromas desagradáveis, além de sofrer risco de refermentação na garrafa e oxidação. Segundo Juliano Perin “Ao não usar SO2 damos espaço ao desenvolvimento de bactérias que matam os aromas do vinho e que, além de tudo, são geradoras de istamina e outras substancias nocivas”.
A expressão de sua origem, seu terroir, talvez a maior mensagem que um vinho nos mande, também pode ser comprometida pelo não uso de SO2,
não intervenção ou má enologia. Vinhos feitos sem SO2 se parecem demais entre si, ou seja, refletem menos sua origem e mais seu método de elaboração. Defeitos provenientes de falta de intervenção mascaram o terroir. As vezes, é preciso escolher entre usar SO2 ou ter um vinho dominado por um defeito, o que não seria nada natural.
Os vinhos com mais risco de atividade bacteriana e portanto que mais precisam de SO2 são:
Vinhos com açúcar residual (os de sobremesa, por exemplo).
Vinhos feitos com uvas danificadas ou com algum tipo de mofo (caso dos vinhos botrytizados, como o Sauternes).
Vinhos com alto PH (e baixa acidez). Quanto mais alto o PH mais SO2 é necessário.
Espumantes são também mais sensíveis, pois se utilizam de vinhos de reserva (de safras anteriores) e são engarrafados com adição de licor de expedição.
Vinhos que não completaram fermentação malo-lática.
Vinhos com muito tempo em madeira.
Vinhos não filtrados.
Vinhos brancos aromáticos, como os Sauvignon Blanc (a oxidação pode comprometer seus seus aromas).
Josko Graver, ao conversar comigo por telefone poucos dias atrás, foi enfático: “É impossível fazer vinho sem uso de SO2. Os velhos romanos dois mil anos atrás já usavam SO2. O próprio mosto, durante a fermentação, como proteção, produz pequenas quantidades de SO2. Este é o único aditivo que uso em meus vinhos, em pequenas quantidades durante a vinificação, nas trasfegas e no engarrafamento. O produto vinho, se for abandonado e se não for acompanhado pelo homem com o uso de SO2, resultará em vinagre”.
Gravner, o rei dos vinhos âmbar tem a mesma opinião da saudosa Anne-Claude Leflaive, rainha dos vinhos biodinâmicos da Borgonha. Estive com ela pouco antes de seu falecimento ano passado e falamos sobre o tema sulfuroso.
Limites
É importante lembrar que as quantidade de SO2 usadas atualmente nos vinhos são baixas e que praticamente todos os produtos que estão agora em sua geladeira trazem mais SO2 que o vinho.
Pelos padrões da União Europeia o limite de SO2 é de 100 mg/L para tintos, 150 mg/litro para brancos, e o limite mais alto de 370mh/L para os vinho botrytizados. Vale lembrar que este limite dos vinhos é bem superior a quase todos os produtos industrializados que compramos nos supermercados, como as frutas secas ou batatas fritas industriais (exemplo de campeões de sulfitos), que levam cerca de 10 a 20 vezes mais que vinho.
Em relação a alergias, segundo o FDA – Food and Drug Administration, doa EUA, cerca de m 1% da população teria sensibilidade a sulfito, e mesmo estes raramente reagiriam ao vinho – ou seja, não culpe o sulfito por sua dor de cabeça. Eu mesmo sofro de asma (um grupo mais sensível aos sulfitos) e nem preciso dizer que se tivesse problemas com sulfitos no vinho eu já estaria sete palmos mais embaixo.
Brasil
Ao falar de sulfitos no vinho brasileiro relato duas curiosidades. A primeira é de 20 anos atrás, quando comecei a fazer sistematicamente provas às cegas de vinhos brasileiros. Nesta época eu era capaz de reconhecer às cegas um vinho brasileiros em meio a importados pelo cheiro de sulfuroso, tal o exagero que era praticado (importante avisar que isso não ocorre mais). A segunda curiosidade é que para esta matéria consultei 3 ou 4 enólogos brasileiros sobre qual o limite por lei e nenhum soube me dizer… (o praticado é tão abaixo do limite oficial que não há preocupação com este número).
Segundo Juliano Perin, no Brasil, o limite ainda é alto: 350 mg/L, de uma resolução da Anvisa de 1988, ainda em vigor e precisando ser revista.
Minha conclusão é simples: o sulfito é nosso amigo, mas deve ser usando com parcimônia, quanto menos melhor.