Tenho andado lúcida, para além da minha humanidade. Percebi que faço como a água: procuro o caminho sem refletir muito – o que me parece lógico. Eu mal sei como vim parar nesse lugar, onde dizem que eu sei ver entre os mundos. 🙂
Esse começo de ano é um nascimento porque claramente não é uma morte. Para mim. Para as mulheres que atendo. Sinto um cuidado infinito. Conseguimos, todas. Renascemos diante do que ficou perdido no corpo do outro. E o outro lá fora é tantos.
É uma atmosfera alegre descobrir que não precisamos enterrar o passado, mas sim fazer pequenas pausas para entender que vamos nos transformando em algo que ignoramos, que fala através de nós. Não existem mais absurdos, estranhezas, apenas ressonâncias. Nada é complexo. É um fenômeno simples, objetivo. Depois de certo tempo, natural. É orgânico mudar sem ter muita clareza dos contornos.
Meus dias correm ouvindo os sons das respirações à minha volta. Muitas vezes, em ambientes seguros, embaladas pelo som do cobre, choramos por tudo que não pôde ser evitado ou por tudo que nunca mais será igual. Quando alcançamos esse ponto de desprendimento das nossas águas, tudo berra dentro de nós. Surge o sorriso nos lábios, a leveza, o corpo que se apura, os sentidos que se aguçam. E ali, logo em seguida, há sempre provações à espera 🙂
Às vezes eu sinto uma ponta de irritação na boca do estômago. São muitas narrativas que parecem “injustas”. Então sob minha forma de fera, caminho pela sala de atendimento, revejo meus pensamentos raivosos, e volto a tocar as tigelas. Tudo pulsa e o som sabe, melhor do que eu, o caminho para soltar os nós de cada narrativa, de cada mulher.
Somos todas miêdkas , aquelas que vivem entre os mundos. Aquelas que sobrevivem ao encontro com o urso. Como diz Nastassja Martin, no livro Escute as feras “É preciso perdoar o urso. Ele não quis matar você, ele quis marcar você. Agora você é metade humana, metade urso.”
Sorrio depois do transe sonoro que as tigelas tibetanas proporcionam. Para elas. Para mim. A frequência sonora do cobre é tão precisa quanto uma agulha da acupuntura. Dois mil e vinte e quatro desemboca num nascimento.
Para todo corte há uma cura. Eu, como uma miêdka, se pudesse trazer uma notícia desses mundos que dizem que eu sei ver, diria a você:
O destino é forjado pela faca do segredo.
Há o destino. Mas há também a vontade.