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Fernanda Torres

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Blog da atriz Fernanda Torres

Mogli

Chorei vendo Mogli. Chorei mais de uma vez vendo Mogli. Chorei pela consciência que cresceu em mim, desde a primeira vez em que fui apresentada ao Menino Lobo, da ameaça que é o homem e sua flor vermelha, o fogo, cujo domínio definiu a fronteira entre natureza e cultura, entre homem e animal. A hecatombe […]

Por Daniela Pessoa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 fev 2017, 17h33 - Publicado em 25 abr 2016, 20h40
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Chorei vendo Mogli.

Chorei mais de uma vez vendo Mogli.

Chorei pela consciência que cresceu em mim, desde a primeira vez em que fui apresentada ao Menino Lobo, da ameaça que é o homem e sua flor vermelha, o fogo, cujo domínio definiu a fronteira entre natureza e cultura, entre homem e animal.

A hecatombe nuclear era um temor real na minha infância, as chamas do Apocalipse, mas, com o passar dos anos,
o horror ganhou outros contornos que tornam Mogli ainda mais tocante, e relevante.

Acabou-se a crença de que a razão, a ciência e a tecnologia nos protegeriam da morte e da finitude. As ogivas ainda pululam pelo planeta, mas são o plástico, os agrotóxicos, os canos de esgoto e de escape dos automóveis que emporcalham ar e mar. O consumo e a parafernália que sustenta nosso conforto se viraram contra nós.

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Somos bichos, tão em risco quanto os outros.

Eu detestei Perdido em Marte, uma película boba, calcada na ideia de que, com uma mente sã e um bom manual de sobrevivência, é possível se livrar de uma enrascada cósmica. Não há metafísica naquele astronauta; nenhum momento de confusão mental; não há vazio, não há medo e não há tédio; falta a condição humana, falta tudo o que Kubrick ensinou em 2001, uma Odisseia no Espaço.

Faz pouco tempo, descobri Tristes Trópicos e, com ele, Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos é o oposto de Perdido em Marte. Durante a travessia do cerrado, solto entre Mato Grosso do Sul e Rondônia, o cientista francês sofre um processo profundo de transformação. Aqui, no Brasil de 1936, o branco racional toma consciência da atrocidade vivida pelos povos indígenas das Américas, perpetuada por uma Europa dita civilizada. A extensa obra desenvolvida por Lévi-Strauss a partir dessa primeira odisseia se ocupa de recuperar e entender a organização social e os mitos de uma cultura que sofreu genocídio.

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Em O Cru e o Cozido, o antropólogo relaciona uma série de lendas que tratam da conquista do fogo. Felinos, porcos, pássaros, macacos, tatus, sapos e cobras são aliados, inimigos, cônjuges e parentes dos homens, não há divisão entre as espécies. É puro Mogli.

O jaguar é o Prometeu das Américas, o detentor do fogo, uma fera que assa a própria caça, numa época em que o homem comia cru. O jaguar adota um curumim perdido e o presenteia com o arco, a flecha e o fogo. É ele quem o civiliza. O jaguar de Lévi-Strauss é a pantera Baguera, é o tigre Shere Khan.

Walt Disney fez de Mogli um dos meus mitos fundamentais de infância. Adulta, com meu filho a tiracolo, eu o revejo enriquecido pelo tempo, pelas leituras e por uma cinematografia de cair o queixo.

Envelhecer tem suas vantagens.

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