Autodidata
Cresci certa de minha mediocridade. Não fui uma adolescente atlética ou especialmente bonita. Jamais demonstrei talento visível para a música ou para a matemática e não atravessei incólume as transformações da puberdade. Boa aluna, minha única característica louvável era ser dona de alguma capacidade de articulação. Até hoje, parece-me impressionante que um ser com tantas […]
Cresci certa de minha mediocridade.
Não fui uma adolescente atlética ou especialmente bonita. Jamais demonstrei talento visível para a música ou para a matemática e não atravessei incólume as transformações da puberdade. Boa aluna, minha única característica louvável era ser dona de alguma capacidade de articulação.
Até hoje, parece-me impressionante que um ser com tantas reticências sobre si mesmo tenha conseguido se equilibrar minimamente nas próprias pernas. Não lembro de como fiquei de pé, foi o acaso, o imponderável acaso que me guiou.
Essa é uma constatação incômoda quando se trata de educar os filhos. Como orientá-los se não sei, ou esqueci, o caminho que fiz?
Cursei o primário em escolas experimentais dos anos 70. Na época, a liberdade era vista como a orientadora suprema da pedagogia. Essa noção caiu em desuso. Uma revisão dos excessos do período levou ao senso comum de que a escola, por mais aberta que seja, não pode fugir do seu papel de autoridade mediadora.
Na adolescência, concluí o ensino médio em um colégio de padres com perfil avançado. Foi o mais perto que cheguei de um ensino de excelência. Encerrei meus estudos logo após o vestibular, disposta a ser atriz e não mais sentar na frente de um quadro-negro.
Não tenho orgulho de tal histórico. Admiro a solidez dos colégios tradicionais e gostaria de ter feito faculdade. Mesmo assim, matriculei meus rebentos em instituições herdeiras da pedagogia que me educou, talvez por receio de criá-los de maneira diferente da minha. Até hoje me pergunto se tomei a decisão certa.
Na sala de parto do meu segundo filho, pedi aos médicos que me dissessem o nome do colégio que haviam cursado. Do anestesista ao obstetra, passando pelo pediatra e pelos principais assistentes, todos gabaritaram São Bento e Santo Inácio. O fato me deu segurança.
A responsabilidade exigida pela medicina requer dedicação e estudo. Tudo requer dedicação e estudo, mas em algumas profissões a falta de tais atributos pode levar à morte.
De todos os orientadores que tive — do tonitruante Moritz, a quem devo o fascínio eterno pela geografia, até a mais esquerdista das professoras de história —, a maior lição que recebi se deu com o professor Talvane, de matemática.
Talvane foi meu mestre no 2º ano do científico. Era um homem de humor pragmático que tinha por missão, naquele semestre de 1982, ensinar as movediças leis da probabilidade a uma plateia hostil de estudantes desinteressados. Acostumado às adversidades e sem alimentar autopiedade, Talvane avançava impávido pelo terreno arenoso sem maiores delongas nem explicações.
O dia da prova se aproximava e eu não entendia patavina da matéria. Em pânico com a iminência de um redondo zero, desisti do mentor. Enfurnada no quarto com os livros, bati contra o muro de cálculos que mais pareciam hieróglifos por uma boa hora, até que, de repente, uma epifania aconteceu. As respostas passaram a se revelar antes mesmo de terminadas as contas. No lugar de fórmulas, a intuição; um estado prazeroso para além do esforço da razão.
A experiência não se repetiu. Não me transformei em uma aluna brilhante de lógica, física e geometria, simplesmente não tenho o dom, mas a surpresa de ter sido capaz de desenvolver um método próprio de aprendizado nunca mais me abandonou. Foi com o professor Talvane e a probabilidade que dimensionei o valor da palavra autodidata.
A capacidade de sustentar uma busca, a curiosidade que não dá trela à preguiça e a disciplina do interesse são traços imperiosos no desenvolvimento de um educando, tenha ele 8 ou 80, siga ele a corrente pedagógica que lhe convier.
As sete artes liberais — a gramática, a retórica, a dialética, a música, a geometria, a aritmética e a ciência — ainda norteiam o que nos é passado em aula. Elas foram definidas na Idade Média e levam essa alcunha por ser consideradas a base imprescindível da formação do homem livre.
É a liberdade no sentido mais amplo do termo: a capacidade de assimilar, apropriar-se e relacionar os diferentes ramos do conhecimento, canalizando-os para os seus objetivos pessoais.
Todo homem livre é um autodidata. Formá-los ainda é o grande desafio da educação.