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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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O garoto e a retranca da desigualdade

Retratado há 23 anos em "Boleiros", sonho de mobilização socioeconômica pelo esporte ainda se esvai em velhas barreiras

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Atualizado em 22 fev 2021, 10h29 - Publicado em 21 fev 2021, 14h56

O garoto pobre apareceu do nada. Louco para filar o rachão da escolinha devorado com os olhos. A caridade e a curiosidade do treinador saciaram o desejo. O comandante queria confirmar a intuição calejada por décadas no futebol profissional. “Boleiro, a gente conhece pelo olhar”, filosofou o ex-jogador do São Paulo à meia dúzia de colegas reunidos no boteco, antes de continuar a história. O garoto batia mesmo um bolão. Jogava fácil, como se chupasse um picolé. Era um Harley, um rasgo de luz. Uma preciosidade escondida na periferia paulistana.

O jovem despertava no treinador um conflito. Por um lado, iluminava a fronteira do jogo com a beleza, a arte, o impossível. Lembrava seus melhores dias. Por outro, revolvia o medo de mais um talento perdido para o desamparo, para a luta por sobrevivência na selva urbana. De tanto ver este filme, tentou ajudar o garoto a driblar o destino. Levou uma dura da galera barra-pesada que se julgava dona do menino e selava seu cárcere no grotão metropolitano. O menino não daria mais a cara no rachão.

“Pô, a gente vem aqui pra tomar uma cervejinha e você conta essa história triste, sem final”, reclamou o amigo ao lado. “Se você quer final, então vai ver novela”, retrucou o espirituoso narrador.

O caso é um banho de realidade. Mas pertence à ficção. Integra as esquetes sobre o mundo da bola concatenadas por Ugo Giorgette em “Boleiros – Era uma vez o futebol”. Disponível no YouTube, o longa de 1998 enriqueceu a cesta de memórias revividas no carnaval pandêmico. Produz diversão e reflexão. Uma delícia.

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Menino controla a bola em escolinha
O garoto bom de bola: cena do filme “Boleiros” (Divulgação/Reprodução)

Prestes a completar 23 anos, a obra mantém o frescor. Numa toada agridoce, trafega por lugares-comuns da ópera futebolística: o pênalti comprado; o ex-craque relegado às aparências; o artilheiro metido a garanhão; o treinador metido a sargento; os cantos da sereia; a vitória da superstição sobre a ciência etc. Nesta galeria de estereótipos e clichês navegam os causos relembrados à mesa do bar. Retratos da vida brasileira

A conversa fiada dos ex-boleiros contrapõe-se ao desencanto com as faces cruéis do futebol profissional. Das negociatas ao machismo de plantão. Da desigualdade que tritura o futuro do garoto bom de bola ao descaso com atletas aposentados, presos à nostalgia das fotos na parede.

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Duro é perceber como esses traços se prolongam, em alguma medida, até os dias de hoje. Representam misérias e ambiguidades brasileiras, e humanas. Replicam-se, por exemplo, no baile da indiferença devassado pela pandemia – espelho das nossas escolhas morais e eleitorais.

O garoto segue no mesmo meio-fio, na mesma sina contra a invisibilidade, a barriga vazia, a violência material e simbólica. Refugia-se nas marquises e nas sobras da infância abreviada. Vaga no sinal, na pracinha, na rodoviária, no campinho, nos brejos da cruz. Cata aqui e ali réstias de dignidade.

Mais que brincadeira, o futebol significa tábua de salvação. A esperança de fugir da extrema pobreza. Nela mergulham quase 13% dos brasileiros, aponta a FGV Social, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Buscam o milagre de sobreviver com pouco mais de oito reais por dia.

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O garoto é um milagre de resistência. Um milagre perecível, assombrado desde cedo pelas formas mais ácidas de cancelamento. Desafiado entre o velho sonho – virar jogador rico e famoso – e a velha realidade. Até um dia evaporar por completo, sem final de novela, sem ninguém notar ou se importar, como se a desintegração natural fosse.

Reproduzido sem firulas por Ugo Giorgetti, o desamparo agoniza à espera de um horizonte acolhedor. Não a acolhida maternal da centenária fábula chapliniana (“O Garoto”, 1921). Mas a efetiva assistência de políticas públicas comprometidas com a redução do desequilíbrio social e a democratização das oportunidades profissionais – a partir de investimentos prioritários numa educação mais qualificada, plural, acessível, imune a cabrestos ideológicos. Isso sim é ficção, diriam os céticos.

O esporte deve sempre fazer parte do time de políticas públicas desejáveis. Não propriamente por sua dimensão de mercado, potencial trampolim de mobilidade socioeconômica. Não por acalentar sonhos de sucesso e riqueza, aspirações legítimas alcançadas por poucos. O esporte configura-se, acima de tudo, uma poderosa ferramenta educacional, cívica, comunitária. Uma fonte de saúde, cidadania, empatia.

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Desenvolver e democratizar essas vertentes esportivas é dever do Estado, e de todos nós. Assim impõem a Constituição e a necessidade de inclusão e justiça social. Ou o filme de Giorgetti seguirá perversamente atual.

O ator Flávio Migliaccio
(TV Globo/Divulgação)

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“Boleiros” também é uma chance imperdível de reencontrar Flávio Migliaccio. Ele partiu há quase um ano. O saudosismo de Naldinho, seu personagem no filme, é acompanhado da saudade que bate ao revê-lo em cena. Irradiava simplicidade, espontaneidade, como um velho conhecido de prosa fácil. Craque.

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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.

 

 

 

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