Tendências, como não lê-las?
O que diz minha bola de cristal, feita de pesquisas e especialistas, sobre os caminhos da gastronomia
Entra ano, sai ano, o leitor nos pergunta sobre tendências. Normal! Mas devo dizer que essa lista deveria sempre vir acompanhada de outra, três vezes maior: a de ressalvas. Afinal, são tendências do Oriente ou Ocidente? De países ricos ou pobres? Qual a situação econômica e a herança cultural? E as redes de abastecimento? Disponibilidade de mão-de-obra? E a geografia? Há abundância de recursos?
Tentar apontar um caminho único é uma grande bobagem. Dito isso, fiz um apanhado do que ando lendo e ouvindo dos especialistas e institutos de pesquisa mundo afora, sempre cruzando com o que acontece aqui.
Pegue a pipoca, porque o texto é grande!
O que é unânime? Inflação global, a ressaca pandêmica e as mudanças climáticas. Todo o resto está lá, sentadinho à sombra desses fatos.
Sem surpresa alguma, SUSTENTABILIDADE é o assunto que está no topo da lista. E em todas as suas frentes.
O cliente está mais preocupado com quem investe na redução do lixo ou mira no LIXO-ZERO: com quem aproveita resíduos para compostagem; doa sobras para upcycling; usa aparas de legumes ou cascas de frutas para fermentados, infusões e outras preparações; ou ainda quem escolhe embalagens ‘amigas do meio ambiente’ na hora da compra de insumos.
Já se nota muito mais investimentos em PROJETOS ARQUITETÔNICOS SUSTENTÁVEIS, que contemplam o uso de energia solar, revestimentos à base de materiais reciclados, sistemas de iluminação inteligente, sensores de presença, lâmpadas econômicas, cisternas que armazenem água da chuva e torneiras inteligentes. Não se trata apenas da escolha de produtores ambientalmente responsáveis.
E mais: a tecnologia, grande aliada da sustentabilidade, acabou com as comandas e há quem tenha abraçado os QR CODES definitivamente, para o desespero de alguns clientes apegados ao papel.
Também se observa um AUMENTO NO NÚMERO DE MENUS FIXOS como aliados do não-desperdício, já que um cardápio de livre escolha acaba levando a um pré-preparo em quantidade maior, por segurança, que sempre acaba parando no lixo.
Na outra ponta, o consumidor anda rejeitando menus longos, de vinte pratos. Apesar da CURIOSIDADE SOBRE O PROCESSO, ingredientes e fornecedores estar EM ALTA, o consumidor está MAIS GREGÁRIO depois dos meses de confinamento e com saudades de conversar com quem está do lado, não de ouvir descrições intermináveis. Também nessa linha, restaurantes que fornecem EXPERIÊNCIAS PARA GRUPOS DE AMIGOS também estão sendo mais procurados.
E por falar em “mais gregário”, volta a tendência das MESAS COLETIVAS com uma novidade: em cafeterias, a explosão da demanda pós-pandemia tornou natural o comportamento de clientes que se sentam com estranhos em mesas de 2 lugares – coisa que antes era restrita a um balcão – e já existem restaurantes que RESERVAM CADEIRAS e não uma mesa inteira para um jantar.
O crescimento do trabalho remoto flexibilizou horários e o local das refeições. Pode-se trabalhar na praia, na montanha, longe dos grandes centros urbanos ou fazer reuniões em fusos diferentes. Houve esvaziamento da oferta de restaurantes em bairros com vocação puramente comercial, como aconteceu no Centro do Rio e cresce o número de inaugurações LONGE DE GRANDES CENTROS URBANOS. Por fim, aumenta a quantidade de lugares que oferece pratos que tenham jeito de QUALQUER HORA DO DIA, como sanduíches, snacks, pratos com ovos ou batatas.
Quanto ao modelo de negócios, REDES de restaurantes COM O MESMO NOME FANTASIA estão EM BAIXA, mas isso não casa com a necessidade do empresário de ter escala para fazer face à pressão inflacionária e aumentar a rentabilidade. Então, a CONSOLIDAÇÃO DO SETOR está em plena ALTA, mas com produtos percebidos como diferentes. A mesma rede pode ter um japonês de nome X, um francês Y e uma sanduicheria Z, como é o caso do Grupo Trëma, com o Mäska, contemporâneo com pitada asiática, o espanhol Izär, o francês Brasserie Mimolette e, em breve, o Rudä, de comida brasileira afetiva.
Outra tendência interessante é o TIKTOK entrando forte na divulgação de marcas para um público jovem, inclusive de comida.
Como já foi bastante noticiado, o setor vem enfrentando uma grande crise de mão-de-obra, pós-pandemia. Seja porque muita gente ficou desempregada e abriu negócios de comida, o que aumentou a demanda por funcionários de cozinha e salão, seja porque muitos funcionários reavaliaram suas vidas e decidiram encontrar horários mais flexíveis, em outras atividades. Essa carência de mão-de-obra coincidiu com o número inédito de 100 milhões de REFUGIADOS por conta de guerras, violência, perseguições e abusos dos direitos humanos, em 2022. Grande parte desse contingente super qualificado adotou restaurantes como trabalho temporário. Com a guerra na Ucrânia, a tendência continua.
Como bem lembra Miguel Pires, crítico do portal português Mesa Marcada, a crise de recursos humanos também levou a outras medidas, que perduram, como o FECHAMENTO DAS CASAS POR MAIS DE UM DIA (OU TURNOS) POR SEMANA para fazer face ao aumento das folgas para os membros da equipe.
Ainda por conta da escassez de gente, funções vêm se fundindo: o sommelier que também é maitre, o garçom que faz as vezes de commis, o saladeiro que se desdobra em confeiteiro e por aí vai… MAIS GENTE MULTITAREFA é uma certeza para 2023.
PRATOS SAUDÁVEIS continuam em alta, como aconteceu nos últimos anos. ALIMENTOS E BEBIDAS FUNCIONAIS OU ENERGÉTICAS são discretamente mencionados nos menus, sem tirar a poesia da coisa.
Apertem os cintos: o mercado de CANNABIS em comida e bebidas deve atingir U$3,4 bilhões em 2030. Já existem restaurantes e cafés nos EUA com pratos, drinks e até pães feitos com infusão de cannabis, desde que a USDA legalizou as primeiras fazendas de cânhamo no país. A onda deve ganhar o Mundo.
Para cruzar tendências mundiais com o que acontece no nosso Brasil profundo, conversei com Aluísio Goulart da Silva e Ricardo Elesbão, da Embrapa Alimentos e Territórios. A dupla confirma que o farm-to-table no nosso Brasilzão segue vingando, com a aproximação cada vez maior de chefs e agricultores, especialmente com foco em alimentos sem agrotóxicos. A GASTRONOMIA DE QUINTAL com base agroecológica também anda em alta, em todo o Brasil. Muitos restaurantes usam ingredientes produzidos em hortas próprias com produtos que não existem no mercado, especialmente PANCS.
O coração também não larga a mesa. Confirmando uma tendência mundial, receitas de memória afetiva seguem em alta, como comprova Roberta Sudbrack, que sempre soube preservar tradições sem deixar a marca envelhecer.
Por falta de tempo, a comida do dia a dia agora é ingerida na rua. Aumenta o número de COMEDORIAS sem pretensões, um tanto pasteurizadas, com pratos corriqueiros e imensa guerra de preços. Por outro lado, a inflação e o aumento das habilidades dos clientes confinados, fizeram com que o consumidor mais exigente se recuse a comer na rua algo que saibam preparar bem. CARNES E PRATOS DE LONGA PREPARAÇÃO, daqueles que ficam por várias horas no forno e ninguém tem paciência de fazer, tendem a fazer mais e mais sucesso em restaurantes.
Ao contrário do que a maioria previa, adotar uma dieta vegetariana ou diminuir o consumo de carnes como medida aliada da sustentabilidade não é a direção predominante. O consumidor segue aumentando o consumo, mas agora PROCURA POR PRODUTOS QUE TENHAM COMPENSAÇÃO AMBIENTAL. É o caso do Rafa Costa e Silva, do Lasai, que só compra carne vermelha de um fornecedor: o Beef Passion, o primeiro com selo verde do Brasil.
Além disso, o mundo segue buscando O APROVEITAMENTO TOTAL DO ANIMAL, para evitar o desperdício. Partes menos nobres do boi, ombro de porco, coxas das aves, cabeças, rabos, orelhas ou pele do peixe. Comeremos todo o bicho que, aliás, também tende a ser preservado por mais tempo. Segue a tendência da MATURAÇÃO dos peixes e carnes.
Quanto às bebidas, o álcool segue em baixa nas novas gerações. O mote tem sido, “MAIS SPRITZ, MENOS ÁLCOOL”. Por ‘spritz’, entende-se bebidas borrifadas com água gasosa. A geração Z, inclusive por medo da exposição das redes sociais, anda curtindo “mocktails” (coquetéis bonitos e enfeitados, mas sem álcool) tão divertidos quanto o resto e sem a ressaca das fotos do dia seguinte.
O mineiro Henrique Benerick Chaves, da Benerick’s Cocktail Co., concorda com as pesquisas, e acha que muito em breve a onda chega no Brasil, mas por ora acredita que licores como base de drinks estão muito em alta no Brasil.
Sebastian Alarcon, do Hotel Casas Brancas, em Búzios, um dos melhores em coquetelaria que conheço, está em linha com vários BARES mundo afora. Acredita que a necessidade de economizar nas compras pós-pandemia impulsionou a tendência do “bar laboratório”, que desenvolve SUAS PRÓPRIAS BEBIDAS DO ZERO (sakes, vermutes ou gins) com trapizongas sofisticadas. Sorte a nossa.
No mundo dos VINHOS, os NATURAIS ou de BAIXA INTERVENÇÃO continuam atraindo o interesse, mas o consumo deixa de ser só “moda” e passa para outro momento, mais crítico. O público entendeu que houve imensa oferta de rótulos ruins que surfaram na onda da novidade e agora exige qualidade.
Nas cafeterias, LEITES DE ORIGEM VEGETAL seguem em alta e agora são pensados para a vaporização e harmonização com café, conta o barista Emerson Nascimento. Outra informação interessante, também compartilhada pelo Benerick é a do crescimento de DRINKS COM CAFÉ. A diferença para aqueles que víamos nos anos 90, pesados e muito doces, é que a bebida agora é bem mais sofisticada e equilibrada.
Enfim…
Foram muitos os futuros estudados, mas estes foram aqueles com maior convergência. Antes de exaurir o pobre leitor, vou lá guardar minha bola de cristal. Não sei que jeito terá o bar, restaurante ou cafeteria do futuro, mas tenho uma grande certeza: te vejo por lá.