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Cristiana Beltrão

Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Mel de abelhas sem ferrão: o novo caviar

Os méis de abelhas nativas e o 8o Concurso Nacional

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
17 nov 2024, 18h37
os inúmeros tons de mel de abelhas nativas
os inúmeros tons de mel de abelhas nativas (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)
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Boca de ralo, mombucão, caga fogo, canudo, boca de renda…

O mundo das abelhas brasileiras é muito divertido. Já o meu primeiro encontro com o inseto, nem tanto.

Morava em Petrópolis e, pronta para tirar uma soneca no sofá da sala, suspendi os cabelos antes de pousar a cabeça na almofada. Zzzzing! Da ferroada veio o pescoço inchado, muita dor e uma apreensão que trago até hoje.

Cresci com a convicção que abelha, meeeesmo, era aquela de desenho animado, riscadinha de preto e amarelo (apis mellifera); uma criatura dissimulada que fazia um líquido tão gostoso só para disfarçar a intenção de nos pegar desprevenidos no sofá. Também tinha a certeza de que todas faziam apenas UM tipo de mel, sempre com o mesmo gosto, doce e viscoso, naquele tom dourado que todos conhecemos.

Mal sabia em que mundo iria mergulhar.

Meu primeiro contato com a complexidade do assunto foi na Nova Zelândia, em 2002, quando me apresentaram o mel de manuka, um arbusto local. O que o fazia tão diferente do que eu comia no Brasil? Foi a ponta do iceberg entender, por mais óbvio que possa parecer, que havia mais de uma espécie de abelha (só da tribo Apis, são 8), muitas flores, climas e biomas diferentes no mundo. E eu queria provar todos.

Fui de mel em mel, vida afora, e lembro a primeira vez que me espantei ao entender que ele nem sempre era doce, caso do corbezzolo, mel amargo da Sardenha. Mas nada me preparou para a total mudança de paradigma que foi a primeira prova do néctar das nossas abelhas nativas, sem ferrão.

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Foi em 2017, o nosso primeiro e inesquecível encontro. Era o mel de abelha jataí: menos doce, ligeiramente ácido e bem mais perfumado. Um mundo à parte.

É fácil entender a popularidade da Apis, uma abelha importada que chegou com os jesuítas, no século XIX. Afinal, seu mel é bem doce e muito mais produtivo que o das Meliponini (as nossas nativas, sem ferrão). A questão é que foi nele que baseamos a nossa legislação e referências gustativas, esnobando o riquíssimo universo de aromas e sabores do mel das abelhas indígenas, um absurdo estratégico para o nosso país, que felizmente começa a ser revertido.

O Brasil vem acordando para o seu imenso potencial, tanto na boca, quanto na preservação e no reflexo da nossa biodiversidade, na maior ação antioxidante (cobiçada pela indústria de cosméticos) e no potencial de desenvolvimento econômico de áreas carentes.

Temos 244 abelhas sem ferrão catalogadas. Se considerarmos a nossa riquíssima flora, nem o céu é o limite.

Eugênio e Marcia Basile, da MBee mel, 10 anos de desenvolvimento de mercado
Eugênio e Marcia Basile, da MBee mel, 10 anos de desenvolvimento de mercado (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)
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MEL DE ABELHA SEM FERRÃO, O NOVO VINHO NATURAL

O movimento de méis de abelhas indígenas pode ser comparado ao movimento de vinhos naturais e, assim como eles, não significam um atestado de qualidade em si, mas uma importante mudança de paradigma DO SABOR.

A legislação datada empacou o desenvolvimento da produção, mas o mercado sempre existiu. Há méis nativos comercializados por colecionadores do mundo todo, abelhas sem ferrão são levadas clandestinamente para outros países e há néctares que valem 5 vezes mais que os das Apis.

Pós-graduados no assunto, mesmo, só os indígenas, que muito antes da chegada das variedades europeias, já criavam nossas abelhas e tinham batizado a turma toda: mombuca, tiúba, uruçu, tubuna ou irapuá, e por aí vai. Além disso, já usavam o produto para fins medicinais e cosméticos.

O crescimento do mel de abelhas nativas é uma “onda sem volta”.

Aqui no Sudeste, não há dúvida quanto ao papel que o casal Márcia e Eugênio Basile, da MBee Mel, teve na aproximação do produto com a alta gastronomia. Através de aulas, visitas e degustações infinitas foram mostrando aos melhores chefs do país a riqueza que tínhamos debaixo do nosso nariz.

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Quando inauguraram a empresa, há 10 anos, apenas dois ou três chefs tinham acesso a produtores, e sempre num mercado informal.

Foi um grande trabalho de desenvolvimento, desde então, tanto do mercado quanto dos produtores, a quem o casal faz questão apoiar e pagar o preço justo, fundamental para uma cadeia produtiva sustentável. Hoje, comercializam méis de todo o país, sempre fuçando novas abelhas, biomas e sabores.

Não à tôa, o casal participou da banca de jurados do 8º. Concurso Nacional de Méis de Abelhas Nativas, organizado pela Associação dos Meliponicultores do Rio de Janeiro (AME-Rio). Além deles, Jérôme Dardillac, o chef dos restaurantes Hotel Fairmont e antigo apaixonado pelo tema. Por fim, a quarta jurada da banca: esta colunista, que vos escreve.

Além de palestras excelentes, tínhamos a missão de provar 65 tipos de mel.

Luiz Medina, da AME-Rio, coordenador do 8o concurso nacional de méis de abelhas nativas
Luiz Medina, da AME-Rio, coordenador do 8o Concurso Nacional de Méis de Abelhas Sem Ferrão (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)
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OS MÉIS NATIVOS CAMPEÕES

O primeiro impacto é a cor.

Os potinhos enfileirados e catalogados sob a coordenação de Luiz Medina (AME-Rio) tinham cores incríveis: iam de completamente transparentes, passavam pelo amarelo brilhante, migravam para um dourado escuro, cor de âmbar e até um, que parecia um licor de cereja.

Foram 65 amostras, provadas às cegas. Quase metade era do Amazonas, reflexo da linda biodiversidade, além dos 7 potes paraenses, 7 do Rio de Janeiro, 4 do Maranhão, 3 baianos, 3 de Pernambuco, 2 do Acre, 2 do Paraná, 2 de Rondônia, 2 de São Paulo, 1 do Rio Grande do Norte e 1 do Piauí.

De um modo geral, os méis de ASF são muito mais ácidos, alcóolicos e têm menos açúcar do que os de Apis. Eu adoro. A viscosidade também varia bastante, de algumas amostras completamente líquidas até outras bem densas como caramelo.

Minhas notas de degustação eram loucas: alguns tinham aromas lácteos, anotei “queijo parmesão (!)”, por exemplo. Quando vi o resultado, mais tarde, a maioria era mel de borá. Muitas tinham um cheiro terroso, como de cogumelos; algumas vinham com notas de ervas; muitos eram florais; vários eram cítricos; outros com forte aroma de resina, vinda do armazenamento na colmeia (aliás, abelhas indígenas constroem potes e não favos). Por fim, havia méis com lindos aromas de frutas, tão diversas quanto laranja, jabuticaba ou fruta de conde

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Quando foram revelados os resultados de tudo que pontuei às cegas, entendi que tenho uma clara predileção por mel uruçu-amarela. Na média, é muito complexo: tem notas, frutadas e florais, além de grande harmonia entre doçura e acidez. Além dele, pontuei muito bem os de jataí e amei o mel da abelha “brabo”, raríssima (Eugênio disse que ainda não foi catalogada pela ciência), a única amostra enviada pelo Piauí. Quero mais.

Para o concurso, são separados entre:

1) refrigerados: aqueles que não passam por fermentação e são mantidos em geladeira para preservar suas características, após a coleta;

2) processados: que podem ser desumidificados ou maturados (num processo de fermentação que pode levar até 3 meses e os torna mais ácidos).

Na média, não pontuei com particular diferença as duas categorias. Ambas têm interesse.

Na colocação geral (abrangendo refrigerados e processados), o grande campeão foi Caio Luiz Gomes Vieira, criador baiano, do meliponário Meldoyá. A abelha era uruçu nordestina. Perfumado, complexo, frutado. Delicioso.

O segundo lugar na colocação geral foi uma surpresa: uma amostra enviada aos 45 do segundo tempo, de Bela Vista, Piauí, com uma abelha não catalogada: a “brabo”. Demais! Floral, fruta, acidez, tudo de bom.

O terceiro lugar foi do Meliponário Iraê, também baiano, com mel de uma de minhas abelha preferidas: a uruçu amarela. Achei encantador, frutado, floral e complexo.

Celicina Ferreira, Presidente da AME-Rio e Eugênio Basile, sócio da MBee Mel, amizade de longa data
Celicina Ferreira, Presidente da AME-Rio e Eugênio Basile, sócio da MBee Mel, amizade de longa data (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

E VIVA O RIO DE JANEIRO!

A boa notícia é que os méis do Rio de Janeiro são espetaculares, mesmo os feitos no perímetro urbano, para meu grande espanto.

O quarto melhor mel processado do concurso foi de Denilson Barros, 48 anos, que tem um meliponário em Jacarepaguá com mais de 100 colmeias e 15 espécies do nosso bioma, coisa pacas…

A paixão é de família. Seu pai, há mais de 50 anos trabalha com mel no Rio Grande do Norte, especialmente com a jandaíra, abelha típica de lá. Seu avô também criava abelhas, mas sem o conhecimento ambiental que hoje temos. “As gerações mais antigas não sabiam lidar com a abelha sem ferrão. Achavam que podiam derrubar uma árvore e que elas fariam ninho em outro canto. Mal sabiam que a abelha rainha não voa. Se não for transferida de forma correta, a colmeia morre”.

Anda apaixonado pelo mel de uma abelha subterrânea, a guiruçu, ralo, floral e clarinho e fala de outra subterrânea: a feiticeira. “Dizem que é alucinógeno, mas depende muito da flor que a abelha visita. Eu não senti nada”.

Sem bairrismos e, revendo minhas notas, o mel de Denilson estava entre os 3 primeiros da minha lista particular. Era de quê? Uruçu-amarela. Ele disse que foi Celicina, presidente da AME-Rio, que insistiu para que mandasse. Sorte a minha.

Outros espetaculares foram os de Ricardo Siri, artista e meliponicultor de Santa Teresa, bairro do Rio de Janeiro. Seus méis foram o 7º, o 9º e o 13º lugar, entre os processados, com excelente pontuação. As abelhas eram, respectivamente, a jataí, a uruçu-amarela e a tubuna.

Ricardo é um engenheiro, que começou a vida como músico e depois foi para as artes plásticas. Como sempre fez trabalhos com elementos da natureza, mergulhava num tema por 1 ou 2 meses, até criar sua obra. No caminho, começou a estudar méis de abelhas nativas e acabou se apaixonando. Além do estudo ter inspirado várias obras de arte (esculturas com própolis, “ninhos” de 50m2 inspirados em colmeias, quadros feitos com favos etc), acabou se formando em meliponicultura na pandemia.

Ficou surpreso quando enviou o primeiro mel para concurso e tirou 3º lugar. Hoje, considera as abelhas suas parceiras artísticas. Seu próximo trabalho vai incluir sons de abelhas num disco. Amei.

Os volumes anuais retirados de cada uma das colmeias, é mínimo. Pode ser de meio litro, apenas, especialmente num ano de seca, como esse.

Dentre os produtos raros, como trufa ou caviar, o mundo dos méis de abelhas sem ferrão é, para mim, muito mais interessante. São o paraíso da língua, céu do estômago e têm o lindo efeito colateral de salvar o planeta.

Viva elas.

frascos
frascos de mel para julgamento às cegas (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)
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