“Calculei esse, aquele ali, o outro que vem atrás, esse da frente também…”. Era impressionante passear por Copacabana ou Ipanema, com meu sogro.
José era sujeito ímpar: baiano, mestre de capoeira, engenheiro calculista, cultíssimo e amante de música clássica. A grande maioria dos prédios antigos do Rio de Janeiro havia passado pelas pranchas de cálculo de seu escritório. Criticava os programas de computador da nova geração que distribuíam pilares em excesso, encareciam e enfeavam as obras. “O povo precisa entender mais de matemática”, comentava.
Eu achava aquilo incrível. “Está vendo esse vão? Podia ser limpo, mas não. Puseram essa, aquela e aquela outra coluna, absolutamente desnecessárias!”. E lá ia ele pelas matemáticas do desenho, explicando distribuição de carga e tal.
Desde nosso primeiro encontro, nos demos muito bem e concordávamos em quase tudo, exceto um ponto: não entendia prazer em comer.
Numa de nossas primeiras conversas (quando ainda queria seduzi-lo como nora) falei de vatapá e acarajé, cutucando a baianice. Sorriu, como sorria para tudo e todos, de um jeito grande e generoso, mas percebi que não se emocionou. “Acho bom”. Disse assim de um jeito prático, como um parafuso falaria da porca. “Não ligo muito para comida, não”.
Comia porque tinha de se manter de pé, por conta da saúde, preocupava-se bastante com nutrição, mas o sabor? Não era assim tão importante.
Quando li sobre os efeitos da Covid sobre o olfato e paladar, me lembrei das conversas com o sogro.
Algum tipo de disfunção olfativa está presente em 86% dos casos leves da doença e quase um quarto dos infectados não havia recuperado olfato ou paladar depois de 60 dias.
Pensei no que seria da minha vida sem algo que me dá tanta alegria e faço sem pensar, há décadas, como adivinhar os temperos num molho ou aromas num vinho. Imagine não distinguir um cogumelo de um palmito, um dente de alho de um rabanete? Me bateu uma tristeza quase depressiva. Não à toa os cientistas estudam o impacto na saúde mental de quem foi afetado. Sessenta dias de papelão na boca, num mundo de sabores amputados pelo Covid-19? Que horror!!
Pensei nos Jetsons (lembram?), desenho animado antigo que, num exercício de futurismo, previu tanta coisa que existe hoje, como TV’s de tela plana, a Siri, esteiras rolantes e robôs que limpam a casa. Mas num episódio em que havia pílulas que substituiriam a sensação de ter comido uma massa ao molho de tomate, por exemplo, eu nunca “me enxerguei”. E a textura da massa? A resistência à dentada? O contraste das partes com mais ou menos molho? Naaahhh!… nessa eles erraram.
Para recuperar o olfato, alguns otorrinolaringologistas sugerem uma espécie de fisioterapia para estimular as células receptoras no teto do nariz. Cheirar café, pasta de dentes, limão etc, todos os dias e profundamente, por 10 segundos, e dar um intervalo até o próximo odor.
Imagino a alegria de sentir, de volta, pela primeira vez, o cheiro de um tomilho! Salivo agora com um mel de tomilho que acompanhou um pato que fiz, depois lembrei do Borgonha que bebi com ele, e por aí fui, em viagem aromática…
Minha sobrinha, Helena – de quem sinto muitas saudades porque mora nos EUA – me disse, um dia: “Adoro o cheiro do seu abraço! É cheiro de tia Cris!”. Pode frase mais fofa? Chorei com a lembrança.
Com três restaurantes abertos, trabalho normalmente há seis meses, mas com máscaras, muito álcool em gel, distanciamento e tal. Morro de medo da peste e, felizmente (até agora) consegui escapar. Me cuido muito porque, de todos os cheiros da vida, o que mais me faz falta é o cheiro de minha mãe. É claro que a visito, mas não abraço desde março.
Vai ser lindo, o dia…