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Cristiana Beltrão

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A “cura” em tempos de coronavírus

Cristiana Beltrão, restauratrice do grupo Bazzar, reflete sobre as possibilidades que surgem frente às adversidades

Por Cristiana Beltrão
Atualizado em 6 abr 2020, 12h19 - Publicado em 3 abr 2020, 11h53
Cristiana Beltrão: a colunista da Veja Rio foi a quarta convidada da série de entrevistas no Instagram (Tomás Rangel/Divulgação)
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No tempo em que eu enchia linguiça, eram dois cubinhos de carne, um de gordura e um tanto de temperos, assim, nessa ordem. Quem queria que eu me ocupasse era Dona Laura — nenhum dente na boca —, e eu fazia aquilo por horas, escorregando as mãos pela tripa sebosa. Naquela época, a luz da fazenda ainda era a do gerador. Às vezes, tremelicava e… Puf! Ficava eu com o dedo parado, sem escorregar nada, esperando voltar. Prendia a respiração, vinha a luz… E eu enchia linguiça. Não sabia de vírus, boleto, crise, fronteira, leito, mortes. Pegava numa bacia os dois cubinhos de carne, na outra um tanto de gordura, e num prato de florezinhas catava os temperos, escorregando as mãos pela tripa sebosa, até o nó.

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Lembrei da cena da infância, nesses dias de quarentena, porque cada segundo cismou de ter meia hora. Eram dias simples aqueles, em que eu temperava, salgava, “curava” coisas. Bem que podia funcionar com a gente agora…

Fosse mineira, tudo estaria resolvido. Escolheria ser “carne serenada”, “orvalhada”, a preparação típica do norte do estado, quase extinta. Espalharia sal pelo corpo — um bom punhado por quilo —, descansaria por cinco horas e depois iria até o parapeito da janela, para me sentar no sereno por duas noites. Acordaria curada e rebatizada com poesia.

Com a cabeça voando até a Sardenha, me imaginei ova, arrancada das vísceras de uma tainha, lavada, salgada, prensada e posta para secar, esperando que bentu maestru — o vento Mistral — me batesse violentamente no rosto, até o fim do outono. Acordaria bottarga, curada do mesmo jeito que os fenícios, primeiros colonizadores da ilha, fizeram há 2000 anos. Na vizinha Córsega, escolheria ser figatellu, ou figateddu, como vi chamarem no sul. Eu, o porco, viraria linguiça feita de carne, gordura e fígado, por vezes juntando meu baço, coração e pulmão. Depois de ter a anatomia rearranjada para a cura, me regaria com um pouco de vinho tinto (perfeito!) e alho. Talvez fosse defumada, talvez não, mas, como manda a tradição, esperaria para me salvar entre a primeira e a última neve do inverno.

E, toda vez que falo em neve, me vem à cabeça a imagem de Pasang, um nepalês que conheci nos Estados Unidos. Antes de migrar, era escalador de elite e, a partir de sua cidade natal, a 3000 metros de altitude, sua rotina consistia das pequenas escaladas de quatro dias a um mês, ajudando a turistada a subir o Everest.

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Eram sete meses no sobe e desce e outros cinco, descansando junto da família, como agora fazemos na quarentena. Como budista, dizia-se quase vegetariano, mas vez por outra, antes do tempo piorar, visitava um mercado “de hindus que matam” e comprava um filé de 400 gramas de iaque, que era toda a carne que sua família precisaria por um mês.

Minha cura enquanto iaque, dos poucos rebanhos que sobrevivem no Himalaia, seria a salga com um tanto de timur, prima da pimenta-de-sichuan, que, assim como o jambu, adormece a língua. Depois de sete dias, bem seca e perfumada, poderia me sentar ao lado de um belo curry de legumes. Achei bonita a causa.

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Fosse primavera, estaria a passeio pela costa espanhola e me salvaria da pandemia como as famosas anchovas do mar Cantábrico, preparadas nas províncias de Laredo ou Santoña. Entraria num barril, tranquila por nove meses, coberta de sal, pimenta e outros condimentos secretos, para acordar melhor. Um bom produtor me regaria com o melhor azeite da região e eu renasceria enlatada, com a carne firme, mas macia e com um papelucho sob meu corpo, onde alguém leria: anchova feita a mão por “Amparo”, “Josep” ou outro artesão treinado por mestres-conserveiros.

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E, por fim, se a cura tivesse de ser muito longa, migraria para os pastos verdes do norte da Holanda, abaixo do nível do mar, e teria a vida de um gouda envelhecido, o queijo mais importante do país e um dos melhores que já comi. Depois de trinta meses de paciência, meu alter ego lácteo, vitorioso, teria um sabor profundo, gordo e de nozes. Com a mágica maravilhosa que só o tempo traz, pequenos cristais se formariam em minha massa alaranjada de consistência indecisa — entre cremosa e quebradiça — e eu seria, enfim, memorável. E a cabeça voa longe, quando o corpo não pode ir ou vir.

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A origem de várias dessas comidas, abundantes hoje em dia, foi resposta à PRIVAÇÃO, fruto da necessidade de aproveitar cada pequeno pedaço de alimento e conservá-lo, enquanto havia. A maioria de nós nunca enfrentou seca profunda, invernos rigorosos ou escassez, mas a mesma privação que causa a ansiedade louca de agora vai parir a solução. É preciso ter calma, muita calma. Seja em três dias ou trinta meses, a cura sempre vem.

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