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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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Ode à dança carioca

O diretor celebra a evidência do bale clássico no Rio de Janeiro, principal atração das próximas semanas

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Atualizado em 11 Maio 2024, 10h54 - Publicado em 10 Maio 2024, 00h31

No dia 07 de maio de 1824, há exatos 200 anos, Beethoven estreava uma de suas mais célebres obras, a Nona Sinfonia, uma composição que tornou-se rapidamente sinônimo de revolução, otimismo e fraternidade. Naquela época, o Rio de Janeiro era a côrte de um ‘novo’ Brasil, independente de Portugal; um Império com menos de dois anos de existência que tinha como soberana uma mulher culta e inteligente, nascida na mesma Viena em que Beethoven estreara sua sinfonia, e irmã do monarca austríaco. São caminhos que se cruzam, como o dos amores da Princesa pela a natureza e patrocinio às ciências e artes. Por uma feliz coincidência, é justamente nesta semana, depois de estréia em ópera (O Elixir do Amor) e música de concerto (a OBS e a excelente série Pianíssimo), que chega a vez do balé clássico assumir o protagonismo da cena ‘erudita’ carioca: com estilos bem diferentes, a Cidade das Artes recebe, nos dias 11 e 12 de maio, o espetáculo A Floresta Amazônica, de Dalal Achcar, e o Theatro Municipal representa a partir do próximo dia 16 sua versão do clássico O Lago dos Cisnes, por Helio Bejani e Jorge Teixeira. Um lago e uma floresta certamente agradariam à Imperatriz Leopoldina; aos cariocas do século XXI, é muito bom que, após ópera e música de concerto, o balé clássico venha completar a ‘Santíssima Trindade’ de tudo que se diz erudito por essas praias cariocas.

Ainda que não possamos comemorar algo como dois século de estréia de A Floresta Amazônica, já estamos bem perto dos 50 anos da criação deste balé antológico, que muitos destacam como o primeiro balé de repertório totalmente brasileiro. Obra do gênio criativo e da cultura da coreógrafa Dalal Achcar, o espetáculo original foi criado em 1975, e para nada menos que a mítica bailarina Margot Fonteyn. Idealizado a partir da música da suíte “A Floresta do Amazonas”, que Heitor Villa-Lobos compôs em 1958 para o filme “Green Mansions”, a partitura ganhou a costura musical do grande maestro brasileiro Henrique Morelembaum. Dividida em várias partes, cada trecho traz uma atmosfera individual e evocativa. Um tema majestoso como uma preparação para a imersão na floresta serve de introdução, sendo seguido de uma seção na qual Villa-Lobos utiliza instrumentos de percussão para imitar os diversos cantos e sons dos pássaros da natureza. Há ainda a “Festa no Sertão” e “Danças”, com elementos folclóricos misturados à música (dita) erudita, e um final grandioso e triunfante. Em “A Floresta do Amazonas” fica evidente a capacidade de Villa-Lobos de fundir elementos da música ‘culta’, de tradição ocidental (descrita por mais de um estudioso de sua obra como essencialmente urbana e carioca), com os ritmos e melodias da música popular e folclórica brasileira; uma das marcas distintivas do estilo que rendeu ao compositor o hoje pouco correto apelido de “índio de casaca”. O coração da obra são duas das canções principais da suite original, onde acontecem os pas-de-deux. Gravadas em 1959 por Bidu Sayão, quando da estréia do balé de Dalal Achcar tiveram como solista o soprano Maria Lucia Godoy: a famosa “Melodia Sentimental” (“Acorda vem ver a Lua, que dorme na noite escura…”) e a sonhadora “Cancão de Amor” — aliás, é justamente a antiga gravação com a voz da cantora que ecoará pela grande sala da Cidade das Artes. Uma bela homenagem naquele espaço quer foi projetado originalmente para ser uma Cidade da Música do Rio de Janeiro.

Na época de sua criação o balé tinha apenas um ato, porém em 2000, ganhou uma versão ampliada e que contava com novos cenários de Hélio Eichbauer e um vídeo de Marcello Dantas. Junto à uma equipe requintada, de uma época em que o Rio contava tanto com mestres de dança vindos durante a segunda guerra da Europa ou Rússia (ou a herança artística destes), e da preciosa parceria do The Royal Ballet, de Londres, Dalal Achcar criou uma espécie de fantasia poética inspirada em lendas amazônicas em forma de balé. Meio século depois, e com uma visão de natureza e povos indígenas moderna, ainda é possível apreciar o flerte, um namoro, entre movimentos inspirados nas manifestações regionais do folclore e os passos do balé clássico e neo-clássico. Com três únicas apresentações, esse é um programa imperdível para quem ama Dança — ou para quem deseja por ela, merecidamente, se apaixonar.

Sorte do Rio de Janeiro que vai poder embarcar na beleza do grande clássico que é O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, apenas uma semana depois de voltar a entrar em contato com algo nos moldes de A Floresta Amazónica, que conta com a qualidade de uma vida inteira no mundo internacional do que há de melhor na dança. Ao lado da tradição, a presença de grandes títulos do repertório como esse oferece a oportunidade de um mergulho no coração do balé clássico, funcionando de porta de entrada no mundo da arte. Talvez hoje mais popular do que nunca depois do filme “Black Swan”, O Lago dos Cisnes retorna ao palco da Cinelândia numa montagem feita com toda tradição e experiência dos artistas do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Após históricas versões como as de Eugenia Feodrova, Jean-Yves Lormeau ou Elena Pankova (para citar apenas algumas célebres montagens), o Theatro Municipal recebe uma coreografia a partir dos originais de Petipa e Ivanov para uma generosa temporada de 11 récitas. Quem tiver a sorte de conseguir ingressos poderá aplaudir aos primeiros bailarinos do BTM, os casais Juliana Valadão e Cicero Gomes, Marcella Borges e Gustavo Carvalho, Manuela Roçado e Filipe Moreira, sempre acompanhados da Orquestra Sinfônica do TMRJ sob a regência de Tobias Volkmann. Outra boa coincidência é importante registrar: A Floresta Amazônica acontece graças ao apoio do Instituto Cultural Vale, e a temporada de O Lago dos Cisnes é patrocinada pela Petrobrás.

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Assim como o movimento final coral da Nona de Beethoven, conhecido como “Ode à Alegria”, os balés que estarão em cartaz no Rio de Janeiro, falam muito da felicidade dessas companhias em dividir arte com seus públicos — e provando que democratização de acesso não está em obras fáceis mas sim na qualidade. A grande sinfonia de Beethoven foi usada no filme Help dos Beatles, e hoje é o Hino da União Européia; da mesma forma, marcou igualmente em dois momentos politicamente opostos do século XX: as Olimpíadas de Berlin, em 1936, sob o regime Nazista e a celebração da queda do muro de Berlin — quando o regente, Leonard Bernstein (“O Maestro”) substituiu a palavras “Freude” (alegria) por “Friede” (paz).

É curioso como uma obra que Beethoven escreveu “para o povo”, tendo estreado numa sexta feira (dia em que os os ricos patronos não iam ao teatro), traga uma mensagem de paz tão atual como urgente. Diz a lenda que o compositor, já bastante surdo, foi de porta em porta avisando aos vienenses da estréia, como muitos artistas até hoje fazem para conseguir seus patrocínios. Além disso, Beethoven mandou seu assistente convocar músicos para tocar na orquestra e até mesmo deu-se ao luxo de ir ao barbeiro — ele que era notoriamente desleixado com a aparência e nem tinha uma casaca para usar. Foram feitos dois ensaios apenas, um para que os músicos lessem as notas da partitura pela primeira vez e o outro para ‘sentirem’ a obra — músicos que não cobraram nada para tocar, numa solidariedade que não é tampouco estranha ao fazer artístico contemporâneo. Na época de sua primeira execução, a Nona era a mais longa sinfonia jamais composta e trazia a absoluta novidade de ter um coro e solistas; quantos não terão torcido o nariz para essa ousadia? Esses críticos, o tempo esqueceu. O que importa é que até hoje conta-se que, ao final, a platéia explodiu numa imensa ovação. O pobre compositor, surdo, nada escutou; coube a uma das solistas virá-lo para que pudesse ver na reação da platéia o triunfo de sua Arte. Assim é muita vezes o caminho da arte: é preciso olhar para a trás.

André Heller-Lopes @andrehellerlopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ

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