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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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O urgente resumo da ópera

A realidade que nos cerca com as tramas das óperas: para onde irá a fantasia no novo normal?

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2020, 10h23 - Publicado em 3 set 2020, 23h25

Decididamente, a vida é uma ópera. Giordano Bruno, o famoso teólogo italiano, poeta e filósofo, matemático e ocultista, frade dominicano e teórico de cosmologia, foi condenado à fogueira pela Inquisição. Nada mais dramático, embora não imagine que sua imolação tenha sido rodeada de uma poética música do fogo mágico; deve ter doído, e muito. Antes de morrer, pôde ao menos nos legar a frase “se non è vero, è molto ben trovato”. Neste anno domine de 2020, ela vale ouro pois a ficção, coitada, tem sido desafiada pelo absurdo mundo do novo normal.

Amigos da literatura terão um duro trabalho pela frente nesse futuro tão incerto. Pensem comigo: qual ficção pode superar a presente realidade, por mais sem pé nem cabeça que seja? Em menos de 10 meses já testemunhamos de ameaça de guerra mundial à erupção de vulcão, de água com geosmina (quem se lembra dela?) à praga de gafanhotos, dos justíssimos protestos do “Black lives matter” nos EUA às eleições e subsequentes protestos na Bielorússia. Tudo infamemente coroado pela pandemia. Não quero citar ataques alienígenas por superstição (embora ache pouco provável que algum povo intergaláctico deseje dominar o mundo como está neste momento) porém convenhamos que pouco campo sobra à fantasia.

A ópera costuma ser acusada de inverossimilhança. Verdade seja dita, muitas das tramas provocam risos ao ouvinte moderno e podem parecer absurdas — não nego. Mas vale pensar que são folhetins que testemunham uma época; registros de um passado com códigos de moral e costumes diferentes dos atuais. Agora, desastres naturais à parte, os humanos aparecem como personagens ímpares nesta encenação chamada de 2020. No teatro como na ópera, o casal de monarcas usurpadores e sanguinários da “peça escocesa” de Shakespeare (depois musicada por Verdi) não ficam nada a dever aos protagonistas de algumas recentes tramas. Lady Macbeth não tinha filhos adotivos que foram acusados de matar, com venenos e tiros, o pai (que, aliás, antes era irmão deles), mas tinha uma consciência que lhe perseguiu à loucura e auto-destruição. A realidade parece superar a ficção atualmente. Se comprovada, a hipótese de uma mãe adotiva ser a figura central de um escabroso plano de assassinato renderia um personagem dramático de primeira linha — e possivelmente sem a obsessão por limpar as mãos de uma imaginária mancha de sangue, elemento de um possível remorso. Traduzido em libreto de ópera, poderia imaginar a criação de uma trama com diversos conjuntos para os filhos, culminando em um grande ensemble para dezenas de vozes. Os solos, duos trios ou quartetos seriam parte importante de um enredo que ainda poderia contar com cenas de interrogatório na policia. E sermões líricos de inspiração épica e religiosa? A protagonista, no melhor estilho da Medea imortalizada por Maria Callas, pediria a voz de um mezzo soprano e contaria com uma fantástica “aria di sortita” onde inicialmente cantaria sua dor e luto. Mas nada, nada seria comparável ao grande final: um monólogo avassalador onde, dependendo do veredito final da justiça, cantaria ou sua inocência em flor, ou todo horror de uma alma fria e manipuladora. Um término trágico e épico como o da ópera “Dead Man Walking”, de Jake Heggie ou uma grande cena de redenção no melhor estilo da “Norma” de Bellini.

Nem só de melodramas rocambolescos no melhor estilo de “Il Trovatore” ou “La Forza del Destino”, de Verdi (com toques do “Álbum de Família” de Nelson Rodrigues) vivemos; na ópera há ainda dramas políticos muito atuais. Os imigrantes que há anos fogem para a Europa, estão no centro de “The Greek Passion”, ópera composta no final dos anos 1950s por Martinu (que, de quebra, ainda traz o elemento da peste). Ainda no início daquela década, o ítalo-americano Menotti, já havia escrito a ópera “The Consul”, uma trama que gira em torno de perseguição politica e de uma mulher desesperadamente em busca de um visto para escapar do país. Todas as idas e vindas do Brexit no Reino Unido bem poderiam ter saído da pequena ópera “Hin und Züruck” de Hindemith; escrita em 1927, ele faz uma paródia do próprio gênero lírico, apenas com a ação indo até certo ponto e depois retrocedendo na ordem invertida dos acontecimentos. Episódios recentes como os envolvendo gaviões levam a pensar em óperas buffas de Rossini, ou uma ópera russa inspirada em Gogol ou ainda em um desses dramas expressionistas absurdos e embebidos em Kafka, tão queridos à ópera do início do século XX. O termo “fatos alternativos”, cunhado há poucos anos, não somente beira o teatro do absurdo de Ionesco como flerta com o famoso “Assim é, se lhe parece”, de Pirandello. Aliás, a julgar pelas diversas e opostíssimas opiniões sobre ambas as convenções da eleição presidencial americana que se aproxima, o tema está mais atual que nunca.

A ópera costuma ser acusada de inverossimilhança. Pobre ópera: a competição doravante promete ser forte pois, decididamente, a ópera é uma vida.

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“[…] Ich habe geglaubt und glaube erst recht
und ging es oft wunderlich, ging es oft schlecht
ich bleibe beim Gläubingen Orden […].”
in Gewohnt, getan (Goethe)

Eu acreditei, e apenas agora acredito de verdade
Apesar de correr ora extraordinário, ora ruim
Permaneço dentre os que acreditam

André Heller-Lopes,
Diretor de óperas e Professor da Escola de Música da UFRJ.

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