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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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Ópera atual: discussão, desafios e desenvoltura

Da resiliência do Festival Amazonas de Ópera a Carmen sem-gênero de Chicago, a arte propõe ideias

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Atualizado em 28 jun 2021, 15h30 - Publicado em 28 jun 2021, 13h30

“Parem as prensas!” era o tradicional bordão dos furos jornalísticos — ao menos nos filmes. Na ópera, e acho que as exclamações oscilam entre “Assassino!” e “Avalanche” (certamente a mais absurda e que deve ser o pesadelo de qualquer diretor encenar…).

Isto posto, parem as prensas!

A ópera de Chicago, nos EUA, acaba de anunciar em sua temporada uma versão de ‘Carmen’ com duas celebres cantoras, ambas mezzo-soprano. Nenhum escândalo aparente? Bom, e se eu completar dizendo que uma faz Carmen e a outra seu infeliz amante, o Don José? Pois esse é o desafio dos mezzos Jamie Barton e Stefanie Blythe (na foto que ilustra esta crônica). Como será, não me perguntem (ainda). Um dos maiores maestros brasileiros esceveu-me: “acho que está na hora de me aposentar.” Será? Talvez não, se pensarmos que esse famoso teatro já encenou dúzias de versões tradicionais, mal não há em uma breve transgressão que pode abrir muitas discussões sobre a atualidade da ópera e questões de gênero. Mal posso esperar para saber quem será o Toreador Escamillo, vértice amoroso entre Carmen e Don José. Está aberta a discussão.

Mas…parem as prensas!

Uma das mais importantes divas do momento, a Sul-Africana Pretty Yende (estava programada para cantar no Municipal do Rio na temporada de 2020…), foi barrada no aeroporto de Paris. Detida quando voltava à capital francesa entre apresentações da ópera A Sonâmbula, de Bellini, na qual cantava o papel-título. Foram-se os tempos em que bebia-se champanhe no sapato das divas ou que, como era hábito no Rio de século XIX, os estudantes soltavam os cavalos de suas carruagens e puxavam eles mesmos as prima donnas até o hotel (ou até o topo do Corcovado, onde cantariam à luz do luar). Porém, a história não tem no final das contas nada de leve. A julgar pela postagem feita por Yende em suas redes sociais, e que incendiaram o noticiário, deixam entrever um comportamento vexativo, desproporcional e, pior, racista. Protagonista da última La Traviata da Opéra Paris (junto com o brasileiro Atalla Ayan) e da próxima no Covent Garden de Londres, de espetáculo em Viena ou Nova Iorque, Pretty Yende é uma deslumbrante mulher preta. Segundo contou, apesar de mostrar seus documentos de residência em Milão, de pedir de volta seu celular para poder telefonar a seu agente ou ao Thêatre des Champs Elysées, foi revistada, despida e detida por várias horas. Bastaria uma breve busca no Google ou até mesmo um momento possivelmente cômico de “então cante para nós!” para a questão ser resolvida. Mas aparentemente era mais fácil supor que uma mulher negra bem vestida e chegando de Milão estava fazendo algo errado. Elogiada em cena, ofendida em terra, difícil não concordar com o racismo estrutural que denunciou a artista. É um desafio ainda a vencer.

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Finalmente, posso tratar do assunto que deveria ter ocupado toda essa crônica não fossem esses “furos jornalísticos”. Mereciam uma coluna cada, e muito destaque em toda imprensa. Na impossibilidade, meu destaque a três esforços para a retomada da cena lírica, a ‘dita erudita’: o Municipal de São Paulo anuncia uma temporada bastante variada e diversa, com liberdade e “arte é ocupar” como seus lemas — tudo que a indústria da música de concerto, da ópera e da dança brasileira deseja é poder ocupar seus espaços e muito além; já o Municipal carioca anuncia duas cantatas, uma de Haydn e outra de Handel, com as cordas da orquestra do TMRJ e comandada por um trio feminino de maestro, cantora e diretora; finalmente, “last but not least”, as três novas óperas brasileiras especialmente criadas pelo Festival Amazonas de Ópera para sua edição de 2021. Silenciado como todas as artes em 2020, o 23ª FAO (note-se bem, mais de duas décadas de Festival no cenário das artes no Brasil) encomendou a uma geração de novos compositores óperas para serem transmitidas por streaming, e encenadas de formas bem diversas. Destaques entre uma programação variada, cada ópera com cerca de meia hora, saídas da imaginação de Leonardo Martinelli/João Luiz Sampaio, Eduardo Frigatti/Machado de Assis e Piero Schlochauer não podiam ser mais variadas em temática e estética — e devem ser ouvidas e vistas, tanto pela suas qualidade quanto pelo esforço heróico de lutar contra a aridez artística que tenta nos cercar. O Amazonas mostra não somente uma resiliência, um desejo de enfrentar os piores desafios da pandemia, como também uma desenvoltura sem tamanho.
Gosta de ópera? Quer gostar de ópera? Quer descobrir uma ópera do nosso tempo? Quer criticar? Faça uma visita ao site do Festival Amazonas de Ópera, para todo Brasil, e se estiver em São Paulo, vá ao Municipal. Vá, simplesmente, vá.

Chapeau!

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ

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