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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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O cancelamento da (não) crítica

O diretor revisita o velho tema “artistas x críticos” à luz da internet e dos cancelamentos: mais humor e gentileza, por favor

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Atualizado em 12 fev 2021, 12h41 - Publicado em 11 fev 2021, 19h39

Todo mundo tem uma opinião. E o direito a ela algo que beira o sagrado. O primeiro crítico deve ter nascido quando aquele infeliz homem-das-cavernas tentou explicar uma caçada e, lá no fundo, um colega disse “Mamute não faz assim.” Na época da internet, todo mundo está a um “like” de distancia de poder decretar o final dos 15 minutos de fama do outro — a ópera não é exceção.

Se o “célebre-entre-os-célebres” Plácido Domingo, do alto dos seus 80 anos e imensa carreira, mal conseguiu escapar de ser cancelado, o que dizer de outros tenores, maestros e diretores? Há injustiças, como o caso do veterano diretor inglês que, com quase 90 anos, fez uma de suas tradicionais brincadeiras, dizendo durante um ensaio que o barítono era tão bonito que podia aparecer com o figurino que quisesse… ou mesmo nenhum; um rapaz no coro tomou ofensa e demitiram o veterano maestro. Há, também, certas divas que, de tão intratáveis, inauguraram o cancelamento já há mais de duas décadas. Uma dessas, aliás, quando de sua última (desastrosa) passagem pelo Rio, exigia que o Copacabana Palace achasse uma forma para que, ao abrir os olhos de manhã, enxergasse o mar. Poeticamente linda mas geograficamente impossível, a melhor solução para a demanda veio de um amigo: “diz para ela dormir numa canga na areia, pronto.”

A relação entre artista e crítica nunca foi muito pacífica. Grandes artistas como Berlioz ou Debussy foram críticos, sem com isso ganhar muita popularidade entre os colegas. Martins Pena, Jose de Alencar, Gonçalves Dias ou Machados de Assis escreveram críticas no Rio de Janeiro Imperial; são muitas delas, jóias de nossa literatura. Longe das divas e divos, nós, artistas mortais, enfrentamos problemas mais curiosos. Todos temos uma “mãe de Miss” por perto — ou pai, tia, irmã etc — foi buscando há poucos dias uma caderneta de vacinação entre as gavetas da casa de meus pais, que dei de cara com uns bons 25 anos de carreira colecionados em recortes. Foi fofo. Que bom que nem toda “mãe de miss” já descobriu o scanner e o pen-drive. Naqueles papéis, achei muita coisa que estava esquecida no meu HD mental; deu saudade do tempo em que os maiores jornais do Rio ou de São Paulo abriam um espaço digno do tamanho e da importância da indústria cultural da ópera, dança e música de concerto. Deu saudade de textos como os de um Lauro Machado Coelho, crítico de verdade que, severo ou gentil, sempre tinha sua opinião solidamente ancorada. Os bons novos autores de hoje têm de embasamento para suas opiniões e disposição de lutar por espaço. Todo meu respeito a eles. Menos interessantes são os diletantes que desesperadamente precisam buscar uma relevância para sua opinião. Empoderados pela facilidade (e irresponsabilidade) de blogs criados entre amigos, condenam artistas ao paredão por mera ignorância ou desejo de aparecer. Fosse um reality show, somente eles sobrariam ao final na casa do BBB da ópera, masturbando-se ao som de defuntas prima-donas que nunca viram ao vivo.

No meio dos recortes, “sobrevivendo a si mesmo como um fósforo frio”, diria Pessoa, estava uma solitária resenha. Nem sei como foi parar ali, pois era uma das muitas bobagens escritas por um mesmo tolo que raramente interessa ler. Detonava um dos melhores cantores líricos brasileiros, tecendo restrições e objeções à sua técnica vocal (!!). Tanto que me fez pensar no ato atual tema do cancelamento. O “articulista”, penso, jamais cantou uma desafinada nota no banheiro (e louvado sejam os céus por isso…) mas lá estava ele discutindo os supostos defeitos da técnica vocal de um profissional. Sem nenhuma formação musical, sem entender de carreira ou legado e tendo visto apenas um punhado de espetáculos locais, lá estava o bobo-da-côrte com suas opiniões de quem acredita piamente ser “crítica especializada”. Fazer-se notar (ainda que pela grosseria com que tratam o artista) talvez seja a única real especialidade desses diletantes. Com carinha de cachorro que caiu do caminhão de mudanças assombram as estréias, buscando poder mostrar sua aprovação (ou melhor, desaprovação, por não sermos no Brasil como a Áustria, os EUA, a França e todos os reinos de perfeição musical). Dr. Freud teria muito que dizer dessa necessidade de ter importância, não pelo que fez, mas pelo que acha que pode destruir do trabalho do outro. O “crítico malvadinho” supera a barreira da vergonha alheia.

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Felizmente, poucos artistas perdem tempo lendo tolices, pois estão ocupados em construir algo — ainda mais num país onde é tão difícil manter essa enorme indústria minimamente viva. Motivo de risos, participam do ‘jogo’ da indústria cultural apenas no quesito ‘fauna’; como os projetos de vilões e ‘mazinhas’ que aparecem em reality shows. E desaparecem. Por sorte, o tempo passa e podemos sempre mudar de canal ou simplesmente não ler.

 

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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