Epidemia, parte 6: dengue retorna ao Rio com força total em 2024
Após penar com a Covid-19, carioca enfrenta de novo a doença trazida pelo Aedes aegypti; previsão é de que estado registre 200 mil casos até maio
Os cariocas já assistiram a este filme sucessivas vezes, desde a década de 1980. A indesejada reprise teima em se repetir no verão: é quando o vilão de menos de 0,5 centímetro retorna com força, atropelando as vítimas com sintomas como febre alta, dor nos olhos e manchas vermelhas no corpo. Originário da África, o temido Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue e das não menos terríveis zika e chikungunya, chegou ao Brasil no século XVIII, provavelmente nas embarcações que transportavam escravizados. À época, porém, a principal ameaça que ele carregava era a febre amarela. Só em 1923 encontram-se os primeiros sinais da dengue nestas praias, mais especificamente em Niterói, e aí começou uma série que bem poderia ter se encerrado na primeira temporada. Mas não. Na capital fluminense, entraram para a história cinco anos de epidemia a toda: 1986, 1991, 2002, 2008 e 2012. Eis que 2024 ingressa no rol, registrando a sexta, e já considerada a maior delas. Sendo que desta vez antecipada, com um empurrão das mudanças climáticas, que trouxeram calor e chuva mais cedo.
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A previsão é de que sejam registrados 200 000 casos até maio em todo o estado. “Antes, a gente tinha as águas de março fechando o verão, e a maior parte das ocorrências vinha muito mais para frente”, observa a secretária estadual de Saúde, Cláudia Mello, lembrando que o problema tem afetado quase todo o planeta. “Apenas a Europa consegue ficar de fora desta globalização da dengue, graças ao clima mais ameno”, explica. Só em janeiro, foram 10 156 infectados na cidade — quase a metade de todo o ano passado, quando foram confirmados 23 000 diagnósticos. A capital bateu então recorde de internações: 362, o maior número desde 1974, o início da série histórica. A situação crítica levou o prefeito Eduardo Paes a decretar a epidemia já em 2 de fevereiro. Um mês depois, a situação só piorou. Até 5 de março, já havia mais de 50 000 registros de pessoas infectadas no município e 92 000 em todo o estado, com quinze mortes confirmadas.
De 2020 para cá, quando outro vírus, o da Covid-19, monopolizou as atenções, não havia notificações de estragos feitos pelo Aedes aegypti. Os especialistas acreditam que a necessidade de ficar em casa ajuda a esclarecer o motivo. Foi, afinal, um período em que as pessoas não só cuidaram mais de si mesmas e de suas casas, mas também não ficaram tão expostas a outros potenciais criadouros do mosquito, uma vez que estavam confinadas. Os esforços concentrados no combate ao coronavírus acabaram deixando como legado centros de inteligência para monitorar doenças, valiosos agora. “Hoje, temos mais estrutura e uma rede de atendimento maior. Conseguimos tratar mais cedo os pacientes, reduzindo a mortalidade”, enfatiza o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz. Na cidade do Rio, que decretou emergência em saúde pública, são dez os polos de atendimento voltados ao tratamento da dengue. No estado, foram inicialmente inauguradas salas de hidratação em 22 unidades de pronto-atendimento (UPAs), podendo chegar a oitenta nos próximos dias.
Contra o pequeno grande vilão também têm sido empregadas armas da própria natureza. A menor delas (a que tem se mostrado mais eficiente) é um microrganismo presente na chamada mosquinha-da-fruta. Desenvolvido na Austrália e trazido ao Brasil pela Fiocruz, o Método Wolbachia consiste em injetar tal bactéria nos Aedes aegypti. A wolbachia impede que os vírus da dengue, zika, chikungunya e febre amarela urbana se desenvolvam dentro dos insetos e seus descendentes. “É uma tecnologia biológica, não há modificação genética”, explica o engenheiro agrônomo Luciano Moreira, pesquisador da Fiocruz que implantou há uma década o projeto no Brasil. Em Niterói, iniciou-se como um piloto na área de Jurujuba e se espalhou por todo o município, colhendo resultados positivos: estudos sinalizaram a redução de cerca de 70% dos casos de dengue, 60% de chikungunya e 40% de zika nas zonas de intervenção.
Na Austrália, onde foi criado, o método levou à baixa de 96% nos registros. Em quatro anos, a Indonésia também apresentou resultados otimistas, com 77% de declínio. Na cidade do Rio, no entanto, a iniciativa, que começou em 2014, não foi adiante. A “arma biológica” utilizada por aqui tem sido outra — o uso de peixes larvófagos (aqueles que se alimentam de larvas de mosquitos), como o popular barrigudinho, que vem sendo introduzido em chafarizes, piscinas abandonadas e locais alagados. “Trata-se de um larvicida orgânico”, afirma Daniel Soranz, que também reabilitou os carros fumacê. Como se sabe, o uso indiscriminado desse método de aspersão do inseticida UBV pode causar danos à saúde e ao meio ambiente, além de eliminar predadores naturais do mosquito. Mas, segundo a prefeitura, o cenário atual justifica a estratégia nas regiões com maiores incidências de dengue, como a Zona Oeste.
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Nada, no entanto, substitui a vacina, um avanço e tanto que a ciência forneceu à humanidade. Feita com o vírus vivo atenuado, aprovada pela Comissão Nacional de Incorporações de Tecnologias (Conitec), do Ministério da Saúde, e incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS), a Qdenga, do laboratório japonês Takeda, já começou a ser aplicada em adolescentes entre 10 e 14 anos. O imunizante, que confere proteção contra os quatro subtipos do vírus da dengue, também vem sendo oferecido a pessoas de 4 a 60 anos na rede particular, por preços que alcançam até 1 000 reais — considerando que são necessárias duas doses, com intervalo de três meses, para completar o esquema vacinal. A imunização plena vem quinze dias após a segunda aplicação. “É um instrumento potente, mas só veremos seu resultado mesmo a longo prazo, daqui a um ou dois verões, quando a vacinação atingir escala”, avisa Cláudia Mello. Até lá, é preciso continuar fazendo o dever de casa com disciplina e rigor.