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Deborah Colker: “Renasci com meu neto”

Coreógrafa fala sobre Theo, que tem epidermólise bolhosa e inspirou espetáculo Cura, e desafios da mulher aos 60: "A porta ainda está fechada e eu chuto"

Por Melina Dalboni
15 mar 2024, 06h00

Às vésperas da estreia do espetáculo Sagração, Deborah Colker deparou-se com o inesperado: um de seus principais bailarinos lesionou o joelho. Era como um atacante fora dos gramados na última hora — e sem banco de reservas para preencher a baixa. Mas a calejada coreógrafa tocou o show, sem deixar que o imprevisto comprometesse a performance da respeitada companhia de dança que comanda há três décadas ao lado do produtor João Elias. Aos 63 anos, com 2 000 apresentações em 32 países vistas por 3,5 milhões de pessoas e o mais importante prêmio da categoria — o Prix Benois de la Danse, em Moscou (2018) —, ela afirma que seu ato mais revolucionário foi “não desistir”. Além da montagem inspirada no balé A Sagração da Primavera, do russo Stravinsky, de 21 a 24 de março no Theatro Municipal, Deborah inicia em maio os trabalhos para sua segunda ópera, sobre Frida Kahlo, que subirá ao prestigiado palco do Metropolitan, de Nova York, em 2026. Ela falou a VEJA RIO sobre o preconceito que ainda paira sobre a dança, os desafios da nova mulher de 60 e as lições extraídas da convivência com o neto Theo, que enfrenta epidermólise bolhosa, doença sem cura que provoca bolhas na pele e inspirou seu último trabalho, Cura.

Acha que a dança contemporânea ainda é uma arte menos prestigiada no Brasil? Totalmente. Lembro que, quando comecei a companhia, minha mãe falou: “Minha filha, ninguém sabe o que é dança contemporânea. Vai para o samba, para uma outra história”. E eu respondi: “Mãe, um dia as pessoas vão acabar sabendo”. Isso foi nos anos 1990 e, mesmo hoje, com tantas conquistas, ainda mato um leão por dia. Tom Jobim dizia que o Brasil não gosta de sucesso. Talvez ele estivesse certo.

O país poderia fazer da dança um patrimônio cultural, como ocorreu com o Bolshoi, na Rússia? Quando ganhei o prêmio Benois de la Danse, em Moscou, comprei ingresso para ver o Bolshoi numa sessão às 3h da tarde, achando que estaria vazio. Mas estava lotado. Na Rússia, eles vão ver balé e orquestra que nem o povo aqui assiste a futebol no Maracanã. É cultural, popular. Por outro lado, no Brasil, todo ano eu e o João Elias, meu grande parceiro, começamos o ano sem saber como vai ser, correndo atrás de incentivo, de patrocínio. E olha que minha companhia tem trinta anos.

Ainda enfrenta mesmo esse tipo de instabilidade? É inacreditável, mas sim. Sigo nessa trajetória por paixão e pela convicção de que a dança cura, revela, transforma. É antídoto e alegria para viver. Ela me ensina a entender que cada indivíduo é raro e precisa ser respeitado, me estimula a ter curiosidade e me conecta com outras culturas.

Em que medida sua nova montagem é um Stravinsky à brasileira, como define? Eu mordi Stravinsky, mastiguei, comi, salivei e cuspi. Como judia de origem russa, eu posso (risos). Meus pais são brasileiros, mas meus quatro avós são russos. Estudei muito A Sagração da Primavera, obra que ele compôs para ser dançada. Vi que teve influências da música pagã, folk, primitiva. Fiz o mesmo percurso, mas aqui, no Brasil, daí ter viajado para o Xingu e buscado ali referências nos elementos da floresta e nos povos originários.

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Acredita que o espetáculo Cura, inspirado em seu neto Theo, que convive com epidermólise bolhosa, provocou mudanças na sociedade em relação ao preconceito com doenças raras? Muito menos do que eu gostaria. Na rua, na ciência, há muito que avançar. A porta ainda está fechada e eu chuto. Uma vez, no Shopping da Gávea, uma mulher virou e falou: “O que houve com ele? Foi mordido por um cachorro?”. Eu contei até 10 000 para não responder: “Não, ele não foi mordido, mas você será agora, por um cachorro furioso”. A ignorância está no ar.

“Me chamavam de general. Mas, como bem diz um verso do Renato Russo:‘Disciplina é liberdade’. É um pré-requisito dentro da dança”

Em momentos como esse, mesmo com a fama de durona, se sente vulnerável? Não planejei ser quem sou. Fui vivendo cada dia, cada momento, cada ensaio, até que chegou o Theo, que me ensina tudo e me faz renascer. A vida é isso, você entender que não sabe nada, porque ela vai te surpreendendo.

Acha que está menos rígida agora? Estou um pouquinho menos, sim. Me chamavam de general. Mas, como bem diz um verso do Renato Russo: “Disciplina é liberdade”. É um pré-­requisito dentro da dança, pois um espetáculo exige do corpo uma capacidade atlética que você só alcança com método e repetição.

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Com o break estreando na Olimpíada de Paris, acredita que as danças urbanas ganharão impulso? É sempre boa essa visibilidade mundial, ela ajuda a romper barreiras. Os dançarinos têm que entender que, apesar de estarem dentro de uma Olimpíada, precisam estar atentos aos elementos da dança sempre, como ritmo, acabamentos e expressão, e não apenas à pontuação. Não é um atleta ali, é um dançarino do esporte.

Além de coreógrafa, tornou-se diretora de ópera. Como aconteceu? Foi mais uma dessas boas surpresas da vida. Certamente um desafio, porque não é fácil dirigir ópera, apesar de eu também ter estudado música. Na vida, se você prestar atenção, vai seguindo o caminho que tem que seguir. Só é importante saber dizer os “nãos” necessários ao longo do caminho. Se você aceitar fazer tudo, acaba se perdendo. Isso é das coisas mais difíceis: as escolhas. Formamos quem somos pelas escolhas que fazemos.

A mulher de 60 não é mais a mesma? Ela mudou completamente. Eu ajo como se tivesse 20. A vida me trouxe o Theo, é uma missão, não importa a idade. Diretora de ópera, por exemplo, eu virei aos 60. O jovem tem o defeito da inexperiência, como dizia Nelson Rodrigues. Como não sou mais jovem, não tenho esse problema. E minha força, como profissional, mãe, avó, segue firme. Faço tudo e ainda boto uma música em casa, tomo minhas cachaças e danço.

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