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Geração que assume a sexualidade sem medo ajuda a espantar o preconceito

Defensora incondicional da tolerância e da diversidade, essa turma busca a liberdade de viver o amor e seus relacionamentos sem rótulos e de peito aberto

Por Pedro Tinoco
Atualizado em 21 set 2020, 11h39 - Publicado em 18 set 2020, 06h00
Nanda Costa: "Quanto mais gente ocupar esse lugar público, nas capas de revista, na TV, no cinema, mais tudo isso será natural. E ninguém vai ser gay por isso. Eu passei a vida inteira vendo héteros na TV” (Vinícius Mochizuki/Veja Rio)
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O conservadorismo nos costumes é uma expressão visível de movimentos políticos que varreram o mundo nos últimos tempos. Alguns anacronismos como o já histórico brado “meninos vestem azul, meninas vestem rosa” às vezes ainda batem à porta. Mas estes ventos embolorados do passado, que teimam em ecoar o preconceito e a intolerância, colidem com outros, que empurram as sociedades rumo a um novo degrau civilizatório: o das liberdades individuais exercidas em seu sentido mais amplo. São as jovens gerações que estão capitaneando a mudança, que traz com ela a diversidade como um valor inegociável.

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Neste cenário arejado, a questão da sexualidade vem à mesa da sala de jantar de forma natural, saudável e multifacetada, como cabe à condição humana, e assim cresce o número de pessoas que expõe ter atração tanto por homens como por mulheres, assumindo-se bissexuais – embora boa parte prefira até fugir desse (e de qualquer outro) rótulo.

Geração que assume a sexualidade sem medo ajuda a espantar o preconceito
Ludmilla: “Ninguém pergunta a um hétero como ele se descobriu. A gente tem de parar de questionar de uma vez por todas e entender a naturalidade desse caminho” (Chico Cerchiaro/Divulgação)

VEJA RIO mergulhou no universo de famosos e anônimos que contam como foi proferir a nem sempre fácil frase “eu sou bi” e como é viver com ela. “Ninguém pergunta a um hétero como ele se descobriu. A gente tem de parar de questionar de uma vez por todas e entender a naturalidade desse caminho”, reforça a cantora Ludmilla, 25 anos, casada desde dezembro de 2019 com a bailarina Brunna Gonçalves, 28.

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A intérprete de Verdinha e Cheguei lembra que, dos primeiros olhares diferentes para meninas até o momento de abrir o jogo com a família, o caminho foi permeado por dúvidas e medo. “Contar para a minha mãe foi um passo duro, mas recebi o apoio dela. Primeiro você precisa se olhar e se reconhecer. Depois, ser acolhido pelos que ama”, diz. Ela e outros deixam claro que a trilha que percorreram não foi linear nem livre de angústias.

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O DJ Ethan Pontes descobriu-se gay aos 17. “Bati no peito, falei com a família, um drama. No final, aceitaram numa boa”, fala. Tempos depois, pegou-se encantado por uma mulher e engatou namoros firmes com o sexo feminino. Escaldado, escondeu a novidade dos parentes, querendo evitar confusão. “A verdade é que gosto de gente”, define Ethan, que completa, dando o tom de sua geração: “Pode ser que eu mude lá na frente? Claro!”

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Ethan Pontes, DJ: “A convivência no meio LGBT me fez entender muita coisa” (Léo Lemos/Veja Rio)
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Pai da psicanálise, Sigmund Freud construiu um castelo de conceitos fundamentais a partir da dubiedade sobre ser homem, mulher, as duas coisas ou mesmo nenhuma delas. Sua teoria sobre a sexualidade afirma que é a libido – a energia afetiva que busca o prazer e faz parte da existência do nascimento à morte – que move o ser humano em sua essência. Ao longo dos tempos, vários voos intelectuais derivaram daí.

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“Os papéis do masculino e do feminino são construções sociais. Homens tentam corresponder ao ideal de poder, de coragem, de ser o provedor. A elas, coube a fragilidade, a submissão, a obediência. Esse sistema seguiu firme por muito tempo”, explica a psicanalista Regina Navarro Lins, que atenta para um sacolejo nesses pilares. “A fronteira está se dissolvendo. Ela joga futebol, ele cuida dos filhos. A tendência é que a escolha do parceiro sexual e do objeto amoroso se dê cada vez mais por afinidades, não importando o gênero”, resume a ideia que ancora seu livro Novas Formas de Amar.

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Essas gerações que carregam a diversidade no DNA revelam em pesquisas uma fluidez quando o assunto é sexo – o que não significa de forma alguma que os héteros estejam em extinção, mas, sim, os rótulos. Levantamento realizado pela agência Thompson, nos Estados Unidos, em uma amostra de participantes entre 13 e 20 anos, pediu a um grupo que se situasse em uma escala de zero a 6, onde zero significa 100% hétero, e 6, definitivamente homossexual. Mais de um terço dos participantes cravou um número entre 1 e 5, ou seja, reconheceram-se como bissexuais em certo grau.

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“Essa metodologia é a da Escala Kinsey, criada no século passado e amplamente aceita”, afirma a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo. Em seu trabalho mais recente, ela ouviu 3 000 pessoas em sete regiões metropolitanas – Rio de Janeiro incluído.

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(redação/Veja Rio)
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Entre sessenta itens abordados (da frequência das relações a preocupações na hora do sexo), chamou atenção um “aumento significativo do contingente que declara fazer sexo com homem e com mulher”. O porcentual ainda é baixo – 5% do total – mas cresceu 60% no Rio e 75% no Brasil em uma década. “Noto no contato que tenho com jovens em palestras que dou em colégios que muitos estão no que chamam de relacionamentos flex”, conta Carmita.

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A opção pela bissexualidade é, não raro, mal compreendida, até mesmo na comunidade LGBTQIA+, sigla que mescla abreviações referentes a orientação sexual e identidade de gênero. “Héteros e homos nesse ponto são iguais. Curtem um só gênero e, com frequência, tratam a bissexualidade como se fosse algo temporário, uma fase, coisa de alguém confuso”, desabafa o estudante de publicidade Igor Carvalho, 21 anos, que se entendeu assim bem cedo, aos 15, e hoje busca facilitar a vida alheia com o uso das redes.

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O estudante Igor Carvalho: “Com frequência, tratam a bissexualidade como se fosse uma fase, coisa de alguém confuso” (Léo Lemos/Veja Rio)

“Muita gente entra em contato comigo no YouTube ou no Instagram para tirar dúvidas, inclusive pais em busca de informação para compreender os filhos. Considero isso um sinal de amor enorme”, diz Igor. Bailarina e professora de artes, Maria Carolina Werneck, 25 anos, sentiu falta de esclarecimentos em seu processo de amadurecimento sexual. “A gente cresce ouvindo: quem é o seu namorado? Você gosta de algum menino? Na adolescência, eu já tinha namoradinhos quando, aos 15, despertaram outros desejos. Fiquei surpresa. Pensava: nossa, será que sou lésbica? Ser bi não passava pela minha cabeça porque não entendia o que era”, ela conta.

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A bailarina Maria Carolina Werneck: “Aos 15 anos, tive outros desejos. Não sabia que podia ser bi, não tinha essa informação” (Léo Lemos/Veja Rio)

O conhecimento salva – em muitos sentidos. Professor de ética e filosofia, Max Ribeiro, 30 anos, enfrenta as chateações da pandemia na companhia da namorada. Ele já não tinha dúvidas sobre sua bissexualidade nos tempos de ensino médio, mas aprendeu muito mais quando entrou na faculdade. “Além do contato com outras pessoas  LGBT, fui apresentado à bibliografia sobre o tema, a estudos de Foucault”, lembra ele, ressaltando o relevante papel das novelas ao retratar os homossexuais de forma menos caricatural.

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Max Ribeiro, professor de filosofia: “As novelas passaram a retratar os homossexuais de forma menos caricatural. Foi um avanço para todos nós” (Léo Lemos/Veja Rio)

A cultura certamente ajuda, mas os depoimentos colhidos nesta reportagem mostram que a bissexualidade envolve algo essencialmente individual – um intenso processo de autoconhecimento. Aos 27, Gabriella Sampaio conheceu a mulher com quem viveria por cinco anos. “Na época, por não saber muito sobe o assunto, assumi que era lésbica.” Hoje, tem um namorado e não esconde, nem no trabalho, nem na família, sua bissexualidade, uma conquista. “Atualmente meus pais são muito tranquilos, mas no começo procuraram até uma psicóloga para mim, nessa pegada da cura gay. Ela foi ótima, sabe que isso, claro, não existe”, diz Gabriella.

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Gabriella Sampaio: “Meus pais hoje são tranquilos, mas no começo procuraram uma psicóloga para mim, nessa pegada da cura gay” (Léo Lemos/Veja Rio)

Já que a informação é boa vacina contra o preconceito, a publicidade em torno dos famosos que revelam sua sexualidade com naturalidade pode ser comparada a uma potente campanha de imunização. “Aos poucos, entendi o poder da minha representatividade. Acho lindo e me motiva quando percebo que outras garotas se miram em mim”, analisa a cantora Ludmilla.

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No fim de 2019, quem também se abriu foi o galã Reynaldo Gianecchini. “Eu reconheço todas as partes dentro de mim: o homem, a mulher, o gay, o hétero, o bissexual, a criança e o velho”, declarou o ator em entrevista. A atriz Nanda Costa jamais vai esquecer o alívio que sentiu quando trouxe à luz seu relacionamento com a percussionista Lan Lanh. “Meu preconceito comigo mesma foi muito ruim, tinha medo de perder trabalho. Seguíamos em táxis separados para o cinema, para eventos sociais, a gente gastava mais dinheiro e ainda poluía o meio ambiente”, rememora a atriz, no maior bom humor. “Quanto mais gente ocupar esse lugar público, nas capas de revista, na TV, no cinema, mais tudo isso será natural”, frisa Nanda. “E ninguém vai ser gay por isso. Eu passei a vida inteira vendo héteros na TV”, pondera.

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(Redação/Veja Rio)

Os escaninhos do passado já não servem para organizar o modo de pensar destes tempos, sobretudo entre os mais jovens – mas não só entre eles. E os rótulos vão pouco a pouco se dissolvendo. Tome-se o exemplo da engenheira Simone Carvalho, 45 anos, da advogada Mariana Muñoz, 33, e do designer Marcus Chamusco, 42. Simone e Mariana foram casadas por quatro anos. O relacionamento terminou deixando algum ressentimento. Há pouco mais de um ano, Mariana e Marcus começaram a sair. Ela explicou ao namorado que seu casamento anterior havia sido com uma mulher e lhe perguntou se ele via problema nisso.

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A advogada Mariana Muñoz (no centro) com a ex-mulher Simone e o atual namorado, Marcus: “O mais importante não é o gênero, mas a pessoa com quem você está” (Léo Lemos/Veja Rio)

“Foi engraçado, ela me pegou de surpresa. Parei para refletir e, de verdade, respondi que não tinha problema nenhum. Só me ocorreu que, se a gente terminar, ela pode vir a sair com um homem ou uma mulher, o que não é uma preocupação”, avalia Marcus. Há um balaio de orientações sexuais aqui presentes: Simone, que já namorou rapazes, se reconhece há tempos como lésbica, Mariana é bi e Marcus, hétero.

Mostrar como a diversidade é praticada e vivida ajuda a afastar o véu de preconceito que obscurece o entendimento, freia a felicidade e, em casos extremos, pode até levar a tragédias. “O Brasil ainda é um dos países onde mais se matam gays, travestis e transexuais no planeta e muita gente é expulsa de casa por ser o que é, mas certamente avançamos de forma notável”, frisa o estilista Carlos Tufvesson, militante da causa há mais de duas décadas.

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(Redação/Veja Rio)

Parte do avanço mencionado por Tufvesson veio por meio da Justiça. São marcos desse inequívoco progresso a legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (2011), com direito a registro em cartório (2013), e a determinação, pelo STF, de que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passe a ser considerada crime (2019).

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Depois de expor seu relacionamento, Nanda Costa, ao contrário do que temia, colecionou boas notícias profissionais. Foi indicada ao Grammy Latino como compositora da canção Aponte, virou embaixadora de uma marca internacional de esporte e ganhou um papel em uma novela das 9. “Sigo falando sobre o assunto para que, cada vez mais, as pessoas possam existir de fato, como verdadeiramente são”, enfatiza a atriz. Você tem medo de quê?

 

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