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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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A Búzios da reabertura

Há quem busque a noite e as praias. Eu só queria a paz.

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Atualizado em 6 ago 2020, 21h40 - Publicado em 6 ago 2020, 20h57

“Bom dia! Bonjour! Que tal?”

Passei grande parte de minha adolescência na pequena casa que meus pais tinham na praia dos Ossos, em Búzios, concebida para deixar jovens à vontade, com cortinas no lugar das portas de armários, colchões vagabundos e nenhuma decoração. Era a nossa tradução de felicidade e liberdade, com amigos em bando, comida simples e tardes espichadas à beira-mar.

A cidade voltada para o turismo e o restaurante com placa “dolar a 5”. (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Ainda não havia música eletrônica aos berros, saindo das lojas e bares, nem as construções esquisitas no Centro. A cidade já era de buzianos, argentinos e franceses, mas o artesanato era o comércio dominante, não havia grifes famosas e o Chez Michou reinava na Rua das Pedras.

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Com o QR code emitido pela pousada fazendo as vezes de passaporte na fronteira, reencontrei a Búzios da minha infância, com ruas e praias vazias (ainda proibidas) e a mesma gente amigável de outrora, que dizia “bom dia” em três línguas.

Graças ao bom funcionamento das barreiras sanitárias e a inexistência de aglomerações, o número de casos de coronavirus foi mínimo, mas o mercado local não sustenta sequer 40% da gente que vive por lá. Sem o motor do turismo, ficam sem renda os pilotos de escunas e barcos-táxi, fotógrafos, arrumadeiras, guias, garçons e tantos outros. O centro parece irreconhecível, deserto, e há um fiapo de comércio na esquina de “vende-se” com “aluga-se”.

Igrejinha de Sant’Anna, padroeira de Búzios, avistando a praia Azeda. (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Apesar de tudo, e com ponta de despeito, afirmo que Búzios tem um clima diferente de qualquer lugar: é a colônia de pescadores mais cosmopolita, festiva e irreverente do Mundo. Sobretudo, tem um grande senso de comunidade. Nesse canto unido contra o vírus, funcionários da Prefeitura orientam a meia dúzia de incautos que insiste em mergulhar ou ocupar a areia, com uma educação invejável. Não havia gente amontoada e vi motoristas dirigirem mascarados, mesmo estando sozinhos em seus carros.

Os condomínios estão repletos e é quase impossível alugar uma casa ou quarto na cidade. Quem já tinha a sua, em vez de arrendar, preferiu se mudar para lá, adotar de vez o home-office e se engajar em ações sociais, distribuindo cestas básicas e comprando ingredientes locais para ajudar. E não foi só isso.

“Ensine o homem a pescar”, diz o ditado. Pois veio dos pescadores o primeiro gesto de solidariedade, me conta Pablo Ricarte, potiguar que já morou no Rio e em São Paulo, trabalhou em navios pela Europa e aportou em Búzios pela qualidade de vida que queria ter. Me disse que a turma da pesca, habituada a abastecer o turismo, distribuiu o excedente para as populações carentes ao longo da praia Rasa e na entrada da cidade, desde o início da pandemia.

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E o mutirão continuou: garçons, barmans e baristas, que tiveram o emprego garantido por empresários que adotaram o movimento #nãodemita, contam que ajudaram como podiam, trocando o serviço de mesa pela manutenção ou pintura dos restaurantes onde trabalham, acompanhando o ritmo da cidade que está em obras desde o início do isolamento.

Garota dos Ossos, agora em versão mascarada (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Apesar de lamentar a falta do turismo, essa Búzios da reabertura descobriu que precisa se reinventar. Quem mora ali acredita que a cidade mais vazia resgata o espírito e o charme que construíram sua fama.

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O turismo predatório que se instalou há uns anos – com ônibus ou lanchas apinhados de visitantes que passam apenas o dia, sem dormir, comer ou mesmo comprar no local – tem efeito péssimo, principalmente ambiental, dizem todos. Do pescador ao empreendedor, a impressão é a mesma: “é gente que afasta as tartarugas”, polui a cidade, descarta o lixo em qualquer canto e não tem o mesmo respeito de quem volta sempre. São tantos que a infraestrutura não consegue absorver. Muitos cogitam que o ideal seja uma “taxa ecológica” de preservação ambiental, como existe em Fernando de Noronha.

Sem poder mergulhar, caminhei pelas praias que pareciam virgens, com suas águas absurdamente límpidas: Tartaruga, Azeda, Azedinha, Ferradura, Ferradurinha, Forno, João Fernandes, todas quase desertas. Visitei a igrejinha de Sant’Anna, a padroeira de Búzios, que avista o mar desde 1740, conversei com os pescadores, e cruzei com as estátuas de Brigitte Bardot, “Garota dos Ossos” e Juscelino Kubitschek, todas mascaradas, para dar o exemplo.

Há pouquíssimos restaurantes abertos de segunda a sexta, nesse momento. E isso é bom. Há alguns na Orla Bardot ou no Porto da Barra. Além deles, hotéis (que estão com ocupação máxima permitida de 80%) abrem diariamente, até para poder servir os hóspedes, muito atentos ao distanciamento e protocolos de segurança.

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Parei para um vinho no charmoso e arejado pátio a céu aberto do restaurante La Gare, de comida simples e serviço atencioso, dentro do Hotel Boutique Vila da Santa. E também não foi esforço algum voltar repetidas vezes ao restaurante 74, dentro do Hotel Casas Brancas. O hotel é, de longe (e com muitas cabeças de vantagem) o mais lindo e elegante de Búzios e o restaurante 74, tocado pelo chef Gonzalo Vidal, o meu preferido na cidade.

Pátio arejado do Hotel Vila da Santa. (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Mesmo sem praias ou comércio, depois de meses de absoluto isolamento, nem sei descrever o bem que me fez passar três dias lindos, silenciosos e frescos diante do mar.

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Aliás… era exatamente nessa época do ano que as baleias migravam a partir do Polo Sul e se extraía ali, naquela armação baleeira do século 18, um novo lote de óleo de peixe para a iluminação do Rio de Janeiro. Era a “minha” Praia dos Ossos que recebia os restos dos imensos mamíferos descarnados. Natural que, na mesma praia, eu tenha conseguido erguer meu esqueleto surrado pela pandemia e que Búzios tenha me emprestado um pouco de luz.

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