A Búzios da reabertura
Há quem busque a noite e as praias. Eu só queria a paz.
“Bom dia! Bonjour! Que tal?”
Passei grande parte de minha adolescência na pequena casa que meus pais tinham na praia dos Ossos, em Búzios, concebida para deixar jovens à vontade, com cortinas no lugar das portas de armários, colchões vagabundos e nenhuma decoração. Era a nossa tradução de felicidade e liberdade, com amigos em bando, comida simples e tardes espichadas à beira-mar.
Ainda não havia música eletrônica aos berros, saindo das lojas e bares, nem as construções esquisitas no Centro. A cidade já era de buzianos, argentinos e franceses, mas o artesanato era o comércio dominante, não havia grifes famosas e o Chez Michou reinava na Rua das Pedras.
Com o QR code emitido pela pousada fazendo as vezes de passaporte na fronteira, reencontrei a Búzios da minha infância, com ruas e praias vazias (ainda proibidas) e a mesma gente amigável de outrora, que dizia “bom dia” em três línguas.
Graças ao bom funcionamento das barreiras sanitárias e a inexistência de aglomerações, o número de casos de coronavirus foi mínimo, mas o mercado local não sustenta sequer 40% da gente que vive por lá. Sem o motor do turismo, ficam sem renda os pilotos de escunas e barcos-táxi, fotógrafos, arrumadeiras, guias, garçons e tantos outros. O centro parece irreconhecível, deserto, e há um fiapo de comércio na esquina de “vende-se” com “aluga-se”.
Apesar de tudo, e com ponta de despeito, afirmo que Búzios tem um clima diferente de qualquer lugar: é a colônia de pescadores mais cosmopolita, festiva e irreverente do Mundo. Sobretudo, tem um grande senso de comunidade. Nesse canto unido contra o vírus, funcionários da Prefeitura orientam a meia dúzia de incautos que insiste em mergulhar ou ocupar a areia, com uma educação invejável. Não havia gente amontoada e vi motoristas dirigirem mascarados, mesmo estando sozinhos em seus carros.
Os condomínios estão repletos e é quase impossível alugar uma casa ou quarto na cidade. Quem já tinha a sua, em vez de arrendar, preferiu se mudar para lá, adotar de vez o home-office e se engajar em ações sociais, distribuindo cestas básicas e comprando ingredientes locais para ajudar. E não foi só isso.
“Ensine o homem a pescar”, diz o ditado. Pois veio dos pescadores o primeiro gesto de solidariedade, me conta Pablo Ricarte, potiguar que já morou no Rio e em São Paulo, trabalhou em navios pela Europa e aportou em Búzios pela qualidade de vida que queria ter. Me disse que a turma da pesca, habituada a abastecer o turismo, distribuiu o excedente para as populações carentes ao longo da praia Rasa e na entrada da cidade, desde o início da pandemia.
E o mutirão continuou: garçons, barmans e baristas, que tiveram o emprego garantido por empresários que adotaram o movimento #nãodemita, contam que ajudaram como podiam, trocando o serviço de mesa pela manutenção ou pintura dos restaurantes onde trabalham, acompanhando o ritmo da cidade que está em obras desde o início do isolamento.
Apesar de lamentar a falta do turismo, essa Búzios da reabertura descobriu que precisa se reinventar. Quem mora ali acredita que a cidade mais vazia resgata o espírito e o charme que construíram sua fama.
O turismo predatório que se instalou há uns anos – com ônibus ou lanchas apinhados de visitantes que passam apenas o dia, sem dormir, comer ou mesmo comprar no local – tem efeito péssimo, principalmente ambiental, dizem todos. Do pescador ao empreendedor, a impressão é a mesma: “é gente que afasta as tartarugas”, polui a cidade, descarta o lixo em qualquer canto e não tem o mesmo respeito de quem volta sempre. São tantos que a infraestrutura não consegue absorver. Muitos cogitam que o ideal seja uma “taxa ecológica” de preservação ambiental, como existe em Fernando de Noronha.
Sem poder mergulhar, caminhei pelas praias que pareciam virgens, com suas águas absurdamente límpidas: Tartaruga, Azeda, Azedinha, Ferradura, Ferradurinha, Forno, João Fernandes, todas quase desertas. Visitei a igrejinha de Sant’Anna, a padroeira de Búzios, que avista o mar desde 1740, conversei com os pescadores, e cruzei com as estátuas de Brigitte Bardot, “Garota dos Ossos” e Juscelino Kubitschek, todas mascaradas, para dar o exemplo.
Há pouquíssimos restaurantes abertos de segunda a sexta, nesse momento. E isso é bom. Há alguns na Orla Bardot ou no Porto da Barra. Além deles, hotéis (que estão com ocupação máxima permitida de 80%) abrem diariamente, até para poder servir os hóspedes, muito atentos ao distanciamento e protocolos de segurança.
Parei para um vinho no charmoso e arejado pátio a céu aberto do restaurante La Gare, de comida simples e serviço atencioso, dentro do Hotel Boutique Vila da Santa. E também não foi esforço algum voltar repetidas vezes ao restaurante 74, dentro do Hotel Casas Brancas. O hotel é, de longe (e com muitas cabeças de vantagem) o mais lindo e elegante de Búzios e o restaurante 74, tocado pelo chef Gonzalo Vidal, o meu preferido na cidade.
Mesmo sem praias ou comércio, depois de meses de absoluto isolamento, nem sei descrever o bem que me fez passar três dias lindos, silenciosos e frescos diante do mar.
Aliás… era exatamente nessa época do ano que as baleias migravam a partir do Polo Sul e se extraía ali, naquela armação baleeira do século 18, um novo lote de óleo de peixe para a iluminação do Rio de Janeiro. Era a “minha” Praia dos Ossos que recebia os restos dos imensos mamíferos descarnados. Natural que, na mesma praia, eu tenha conseguido erguer meu esqueleto surrado pela pandemia e que Búzios tenha me emprestado um pouco de luz.