Identidade do subúrbio carioca inspira cultura retrô no futebol
Lançamento de camisas e livros de times suburbanos resgatam memória de um Rio esquecido
Não é de hoje que clubes de futebol comercializam versões retrô de seus uniformes e livros históricos que relembram as glórias do passado. Os produtos costumam homenagear os títulos, os ídolos, os grandes elencos. No Rio, é comum ver peças dos quatro grandes clubes da capital à venda. A novidade, no entanto, é a produção de artigos retrô de times do subúrbio carioca. Ligados a um resgate da cultura local, os produtos exaltam partes da cidade que são pouco lembradas pelo imaginário popular.
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Nesse cenário, as fanzines do Deriva dos Livros Errantes, a releitura de camisas realizada pela marca Pormenor e a produção de livros sobre futebol alternativo, como Da Lama à Grama, se destacam por exaltar a identidade suburbana.
As iniciativas prestigiam a tradição de alguns dos clubes mais antigos (e importantes) do Rio, como America, Bangu, Campo Grande, Madureira, Olaria e São Cristóvão. Com o lançamento desses projetos, os ditos “times pequenos” da cidade se tornam protagonistas.
Há dois anos, o professor de biologia tijucano Kléber Monteiro decidiu escrever um livro sobre futebol. Segundo ele, a ideia era contar a história dos clubes de bairro que se acostumou a ver enfrentando os grandes da cidade, inclusive o seu time de coração.
“Era um plano que eu tinha há muito tempo, de escrever um livro sobre os times de menor expressão, porque isso remetia ao meu passado. Cresci vendo esses jogos, Fluminense contra o Campo Grande, contra o Bonsucesso, contra o Olaria. Me dói muito não ver esses clubes disputando a 1ª Divisão atualmente”, declarou.
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O resultado foi Da Lama à Grama, um testemunho das aventuras do autor na cobertura da Série B2 do Cariocão 2019, a terceira divisão estadual. No livro, lançado em julho do ano passado, Kléber relata não só os jogos, mas as experiências únicas que viveu ao acompanhar de perto as divisões inferiores do futebol.
Entre elas, ele destaca o contato próximo que teve com jogadores e torcedores, além da oportunidade de visitar estádios icônicos do Rio de Janeiro. Da Lama à Grama, que terá uma segunda edição lançada em breve, foi custeado por uma campanha de financiamento na internet e teve boa recepção do público, vendendo todos os 250 exemplares lançados.
Depois do sucesso da primeira obra, Kléber Monteiro começou a pesquisar sobre a história de um clube extinto, o Andarahy Athletico Club. A partir dos relatos de jornais antigos e de alguns torcedores, o autor elaborou um livro comentando jogos do clube da Zona Norte em um período de 25 anos.
“O livro (Da Lama à Grama) deu voz a quem nunca teve voz. E o do Andarahy tem essa mesma pegada, de resgatar a história de personagens importantíssimos em uma determinada época, figuras que foram importantes para solidificar a nossa paixão pelo futebol”, afirmou.
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Para impulsionar o novo livro, Kléber começou a produzir e vender camisas retrô do Andarahy nas redes sociais. Logo depois, ele recriou o uniforme de outro clube extinto: o Confiança, equipe de uma antiga fábrica de tecidos em Vila Isabel.
Assim como a iniciativa do professor tijucano, outros apaixonados por futebol têm investido em releituras de camisas dos times suburbanos. É o caso da marca de roupas .PORMENOR, criada por dois amigos de infância do bairro de Bento Ribeiro.
Os fundadores da grife, Matheus Almeida e Bernardo Cordeiro, lançaram a .PORMENOR em 2016, produzindo roupas casuais inspiradas pela estética do subúrbio carioca. Identificados com a cultura futebolística, eles resolveram inovar e lançaram a coleção “Clássico Suburbano” em fevereiro desse ano, com versões autorais das camisas de Bangu, Madureira e São Cristóvão.
O design das roupas é feito por Bernardo, que se inspirou em uniformes clássicos das equipes, como a camisa do Madureira de 2006, campeão da Taça Rio. Assim que foi divulgada, a coleção viralizou na internet e surpreendeu os dois amigos, que venderam todo o estoque em poucos dias.
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Segundo Matheus, a ideia surgiu a partir da identificação deles com os clubes e da vontade de produzir peças tradicionais, como homenagem, mas com um toque de originalidade. Com essas peças, eles uniram a moda urbana ao estilo “boleiro”, reproduzindo uma tendência atual.
“O salto para fazer camisas de time foi muito natural. A gente usa roupa de futebol desde sempre. Quando percebemos que o mercado estava reconhecendo isso como moda, com os próprios clubes lançados campanhas produzidas, a gente começou a fazer também.”, lembrou.
Com a recepção positiva do público e dos clubes homenageados – que entraram em contato para celebrar a campanha – a .PORMENOR lançou mais duas peças ligadas ao futebol suburbano. Primeiro, fizeram uma releitura da camisa do Olaria, lançada em abril, com direito a ensaio fotográfico no estádio do azulão, o tradicional campo da Rua Bariri.
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O lançamento mais recente da marca foi uma homenagem ao ex-jogador Ado, um dos maiores nomes da história do Bangu. Pela visibilidade dos lançamentos anteriores, dois publicitários banguenses procuraram a .PORMENOR para produzir as camisas do ídolo.
A peça está em circulação desde maio, e o dinheiro arrecadado com as vendas está sendo revertido para Ado, que vive um momento de dificuldade financeira durante a pandemia.
Ao comentar sobre o conceito por trás dessas peças, Matheus Almeida enfatizou o resgate da identidade suburbana proposto pela marca. Para ele, a intenção sempre foi espalhar uma estética que era pouco representada no imaginário carioca.
“A gente percebeu que poucas marcas falavam da parte do Rio que não é a da praia, da Zona Sul. Então, a nossa proposta desde o início foi falar dessa cultura, pegar elementos do subúrbio do Rio. Isso deu certo, o público se identificou”, declarou.
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O resgate da cultura suburbana junto ao futebol é também pauta da iniciativa do professor de geografia Pedro Henrique Gomes, morador do bairro de Todos os Santos. PH, como é conhecido, produz fanzines sobre equipes tradicionais como Campo Grande e Bangu e os extintos Manufatura e Barreirinha.
Criado pelo professor em 2019, o projeto Deriva dos Livros Errantes nasceu após anos de atuação dele no cenário cultural da Zona Norte, sobretudo na região do Grande Méier.
Com o objetivo de realizar uma ação direta de educação e cultura no subúrbio, Pedro Henrique reuniu textos que ele mesmo havia publicado online e adaptou o conteúdo para o impresso.
De acordo com o professor, essa migração permitiu que o material atingisse um público que se interessava pelo assunto, mas não tinha tanto acesso à internet. A partir de então, ele expandiu o projeto, escreveu e divulgou mais textos autorais dedicados a preservar a memória suburbana.
“As zines são muito na atitude do ‘faça você mesmo’. Se você quer passar uma mensagem, você pega um pedaço de papel, escreve e compartilha. Então, eu produzo tudo: a pesquisa, a escrita, a revisão. A única coisa que eu não faço é a impressão, que é feita em uma gráfica. Quando recebo o material, eu encaderno os livretos e penso em conjuntos para vender, a fanzine e um pôster, um adesivo, um bordado do escudo dos clubes”, reiterou o autor.
Com o crescimento do Deriva, muitas pessoas conheceram o trabalho de PH e entraram em contato para aprender sobre a produção de fanzines. Desde então, a iniciativa autoral tornou-se também uma espécie de editora. Alguns leitores passaram a colaborar com o conteúdo e a criar as suas próprias zines, com revisão e finalização de Pedro Henrique.
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Em seus textos, o professor traz um tom eufórico, uma visão apaixonada do futebol tradicional. A partir do processo de pesquisa, em arquivos de jornais, depoimentos de torcedores e ex-jogadores, PH relata o esforço em encontrar essas histórias.
Ele apontou a dificuldade que existe no Brasil em cuidar da memória dos clubes. Por falta de interesse das instituições, muitas vezes esse trabalho fica na mão dos torcedores e, a partir de então, surgem iniciativas como o Deriva dos Livros Errantes.
Pedro Henrique ressalta ainda que a perda de visibilidade e atração dos clubes do subúrbio carioca é preocupante, uma vez que estes são lugares de grande valor cultural, mas que estão ameaçados de acabar.
“Esses times têm uma importância muito grande nos bairros, de desenvolvimento local, de lugar de encontro, de cultura, educação e de convívio social. Então a gente deve preservar esse subúrbio “futeboleiro”. A gente não pode perder a magia de um dia de futebol em Moça Bonita, em Conselheiro Galvão. Eu gostaria, de verdade, que as futuras gerações pudessem viver essas experiências”, sublinhou o autor.
*Leonardo Soares Young, estudante de Jornalismo da PUC-Rio, sob supervisão de professores da universidade e revisão de Veja Rio.