Museu do Pontal inaugura nova sede e prova que há vida após a tormenta
Depois de um triste histórico de inundações, a instituição, depositária de um dos mais importantes acervos de arte popular brasileira, reabre na Barra
Ao longo da última década, bastava qualquer prenúncio de chuva, especialmente aquelas de verão, para que Lucas Van de Beuque sentisse um arrepio. Diretor-executivo do Museu do Pontal, ele testemunhou as constantes inundações que puseram em risco o precioso acervo de arte popular da instituição fundada há 45 anos pelo avô, o designer francês Jacques Van De Beuque (1922-2000).
Em 2014, um relatório da Coppe/UFRJ atestou que o imóvel localizado no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste, só pararia de sofrer com enchentes se o terreno onde está fincado pudesse ser elevado 1,5 metro.
Foi então que Lucas e a mãe, a curadora Angela Mascelani, entenderam que era hora de buscar outro abrigo para as mais de 9 000 peças da coleção. Pondo fim à longa agonia, em outubro o novo Museu do Pontal abre as portas em um terreno de 14 000 metros quadrados, na Barra.
O edifício projetado pelos mesmos arquitetos que assinam algumas galerias do Instituto Inhotim, em Minas Gerais, segue conceitos de sustentabilidade, com amplas portas e janelas, muita iluminação natural e sistema de reúso de água da chuva.
“A conta de água custava 20 000 reais, agora não passará dos 4 000. É uma bela metáfora de um processo de mudança que se arrastou por anos”, diz Lucas.
Certa vez, emocionado com as obras de mais de 300 artistas brasileiros do acervo, o cantor e compositor Gilberto Gil declarou que o Museu do Pontal “é uma foto 3 x 4 do Brasil” — aliás, dos diferentes Brasis compreendidos entre o Oiapoque e o Chuí.
Em 1976, poucos meses antes de fundar a instituição no Recreio, Jacques Van de Beuque apresentou no Museu de Arte Moderna do Rio a exposição A Arte do Viver e do Fazer, composta das primeiras peças garimpadas em viagens pelos rincões do país.
Até então, a arte produzida em locais pobres e distantes dos grandes centros não era apresentada nas salas de um importante museu. A ligação do francês com as peças de barro foi herdada pelo filho, Guy, morto em 2004, e pelo neto, Lucas, agora no comando — e a continuidade do trabalho possibilitou que artistas geniais, como Mestre Vitalino (1909-1963) e suas antológicas esculturas, e dona Isabel Mendes da Cunha (1924-2014), artesã de bonecas, fossem reconhecidos internacionalmente.
“Existe uma ideia preconceituosa de que a arte popular é ingênua, mas ao contrário: ela retrata assuntos que hoje são fundamentais para a vertente contemporânea, como as relações de prazer, de poder e de trabalho”, avalia Ulisses Carrilho, curador da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, enfatizando o valor do acervo.
Na exposição de boas-vindas, com abertura marcada para 9 de outubro, o público vai estar diante de 2 000 obras, algumas emprestadas por colecionadores e outras instituições, junto a textos de gente de renome de diferentes áreas, como Gilberto Gil, Ailton Krenak, Lilia Schwarcz e José Saramago (1922-2010).
Mais cinco mostras temporárias vão se espraiar pelas galerias, destacando, por exemplo, o sincretismo religioso, as artes circenses e o Carnaval. “Vivemos um momento de desvalorização da cultura, então pretendemos ser um espaço de acolhimento, tanto para visitantes quanto para curadores de fora, convidados a mergulhar na nossa coleção”, ressalta Angela Mascelani.
+ Para receber VEJA RIO em casa, clique aqui
Um atrativo à parte reside do lado de fora: um jardim de 10 000 metros quadrados, onde foram plantadas milhares de mudas de 73 espécies nativas do Brasil, projeto que germinou graças a um financiamento coletivo pela internet que arrecadou 271 000 reais.
Com paisagismo do escritório Burle Marx, a área verde vai contar com intensa programação para todas as idades — e a vizinhança agradece. “A Zona Oeste oferece boa estrutura de serviços, mas é carente de equipamentos culturais”, afirma Lucas, inspirado por espaços como a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que extrapolam o conceito clássico de museu com seus generosos ambientes de convivência ao ar livre.
Tradicionalmente, 25% do público do Museu do Pontal é de turistas. Com a mudança para um local 20 quilômetros mais perto do Centro, a ideia é conquistar os cariocas.
Seguindo o exemplo do MAM Rio, a instituição não vai cobrar ingresso, adotando o modelo de “contribuição sugerida” — que, aliás, ajudou a fazer a visitação no prédio modernista do Aterro do Flamengo aumentar 300% e a receita média dobrar em um ano de pandemia.
Afora o apoio financeiro da prefeitura, a nova sede recebe verba de patronos como BNDES, Vale e Itaú — e outras empresas parceiras ajudam a manter os projetos de pesquisa de artesanato na Ilha do Ferro, em Alagoas, além das residências artísticas.
A sociedade civil também será instada a engajar-se e a colaborar, como ocorre pelo mundo todo. “Desde a primeira enchente, recebemos apoio da comunidade e de pessoas apaixonadas pela arte popular. Não temos vergonha de pedir contribuições”, arremata Angela. A causa é boa.