Quem é o pai do Cristo?
Herdeiros de Heitor da Silva Costa, o arquiteto que concebeu o monumento e coordenou as obras, e a família do escultor francês Paul Landowski não se entendem. Segue nos tribunais a luta pela paternidade da estátua.
Fruto do esforço e da criatividade de um grupo numeroso de profissionais e artistas, não de uma só pessoa, a estátua do Cristo Redentor tornou-se, por isso mesmo, órfã de um pai declarado, que lhe fosse único e reconhecido historicamente. Ao longo de décadas, esse vácuo de paternidade abriu espaço para que se cometessem injustiças, ou pelo menos algumas distorções, a mais grave delas uma versão “aprendida” até em bancos escolares, que diz: “O Cristo foi um presente da França para o Brasil”.
Não foi. Essa conclusão apressada decorre do fato de que, realmente, durante alguns anos, artistas e técnicos franceses estiveram envolvidos na empreitada. Mas nada é tão simples assim. Explica-se. Quando se listam os principais responsáveis pelo monumento, a maioria dos pesquisadores concorda em atribuir fundamental importância a um trio: Heitor da Silva Costa e Heitor Levy, brasileiros, xarás, e Paul Landowski, polonês que na época estava radicado em Paris. Dentro do grupo, e por uma razão muito simples, é o arquiteto e engenheiro Silva Costa quem costuma receber mais loas. Motivo: é dele o projeto vencedor do concurso aberto pela Igreja Católica em 1921, e também foi ele o coordenador de todas as fases da obra.
Cartas e estudos redigidos pelo próprio, reproduzidos em revistas da época, ajudam a entender por que a gama de parceiros foi tão grande: “A estátua deveria ser modelada por um escultor, mas suas grandes linhas pertencem ao domínio da arquitetura, e sua construção e estabilidade entram no campo da engenharia”. Ao mesmo tempo em que recrutava colaboradores dessas três áreas do conhecimento, com a ajuda do pintor e desenhista ítalo-brasileiro Carlos Oswald ele repensava seu projeto original do monumento, muito rebuscado, que chegou a ser apelidado de “o Cristo da bola”, por segurar o mundo com uma das mãos. Depois desse primeiro esboço, Silva Costa finalmente bateu o martelo pela forma de uma cruz, para que pudesse ser observada ao longe.
Entre 1924 e 1927, percorreu vários países da Europa a fim de contratar técnicos e artistas. Depois de ter decidido que o monumento seria de concreto armado, chamou o engenheiro Albert Caquot para fazer os cálculos estruturais, e deu a Landowski a incumbência de esculpir uma maquete da estátua, de cerca de 4 metros de altura. O artista também deveria fazer rosto e mãos baseado nos desenhos e modelos que Silva Costa e Oswald haviam preparado. Landowski elaborou, então, uma série de peças de gesso. Foi um trabalho exaustivo. Um dos projetos foi abandonado porque a roupa tinha babados demais.
Em meados da década de 20, moldes de gesso da cabeça e das mãos saíram do ateliê do escultor e, em pedaços, vieram de navio ao Rio, onde seriam remontados pela equipe do engenheiro Heitor Levy. Este passaria para a história como o “mestre de obras” do Cristo, encarregado de tornar realidade o que até ali era percebido apenas em papel ou gesso. Braço direito de Silva Costa no topo da montanha, Levy foi o homem do cimento, dos andaimes e da logística da construção. Era também o responsável por acompanhar de perto, com olhos vigilantes, o trabalho dos operários.
A alma do monumento, porém, costuma ser atribuída a uma quarta pessoa: ela pertenceria, de fato e de direito, segundo o próprio Silva Costa, ao cardeal Sebastião Leme, que se envolveu totalmente com a causa e promoveu campanhas de arrecadação de doações (o dinheiro foi todo ele brasileiro, a tese de presente francês não faz o menor sentido), orientando a todos sobre como a Igreja gostaria que ficasse, ao fim e ao cabo, sua homenagem a Jesus Cristo.
Dividida entre técnicos, artistas e religiosos, ao longo dos últimos oitenta anos a discussão sobre a paternidade do Cristo tem dado pano para manga. Atualmente, os principais atores da polêmica são a Arquidiocese do Rio, detentora dos direitos patrimoniais, a bisneta de Silva Costa, Maria Izabel Noronha, os herdeiros de Landowski e empresas que tentam usar a imagem da estátua com fins comerciais.
Os direitos da Igreja Católica não costumam ser questionados: a cessão patrimonial esteve nas mãos do arquiteto Silva Costa, já que no contrato entre ele e a Comissão Promotora do Monumento, que conduzia o projeto, havia uma cláusula específica com tal prerrogativa. De lá para cá, as leis mudaram, mas na visão de especialistas o conceito se manteve. “O Cristo é considerado uma obra coletiva pela lei atual, e o gestor dessa obra, Heitor da Silva Costa, também era o gestor desses direitos. Ele podia transferi-los e o fez”, explica o advogado Alvaro Loureiro Oliveira, do escritório Dannemann Siemsen, que atua para a Arquidiocese.
Apesar do reconhecimento que costuma receber mundo afora, o próprio Landowski (que nunca visitou o Corcovado, aliás jamais esteve em solo brasileiro) parecia não gostar muito da obra que ajudou a fazer. Ele chegou a se referir à cabeça deste modo, em seu diário: “Ela é um horror”. Mesmo assim, há quem o considere o criador do monumento, como o historiador Adon Perez, um brasileiro que mora na Suíça, para quem Silva Costa foi apenas o “maestro” da construção. O pesquisador esteve no Rio dois meses atrás, num encontro sobre art déco no Hotel Windsor, no Leme. Sem apresentar documentos, valendo-se somente de opiniões, ele chegou a discutir com Bel Noronha, a bisneta de Silva Costa ? e o clima no refinado salão ficou tenso.
A cineasta refuta a classificação de “maestro” dada a seu bisavô. Essa versão ajudaria a dar força a cobranças de direitos de imagem por parte de empresas como a Autvis, vinculada à agência francesa de direitos autorais representante do escultor. Companhias que planejam usar a imagem em publicidade, mesmo com o aval da Arquidiocese, vêm recebendo uma carta cujo texto é aberto da seguinte forma: “Tomamos conhecimento de que a obra do Cristo Redentor, de Paul Landowski, está sendo reproduzida em vários locais sem a devida autorização”. A sombra da cobrança judicial já levou pelo menos um grande banco a pagar, mesmo sem ser obrigado, pelo uso de foto da estátua em uma propaganda.
Mas há quem não aceite esses termos. Recentemente, a Justiça extinguiu ação movida pelos herdeiros franceses contra a joalheria H.Stern em torno da venda de um pingente do Cristo. A título de “danos morais” pela falta de autorização, exigia-se pesada indenização em dinheiro. Depois de estudar documentos históricos reunidos pela joalheria, o juiz entendeu que faltava legitimidade a quem propunha a ação. “Já recorremos da sentença”, diz, de São Paulo, a advogada da família Landowski no Brasil, Maria Luisa Egea. “Os direitos morais são dele”, acredita.
Bel Noronha, que dirigiu em 2008 um documentário sobre o monumento, guarda consigo uma certidão de 1925, do próprio Paul Landowski, com tradução juramentada, além de uma carta assinada pela filha dele, Françoise. No texto do primeiro documento, além de admitir que é o “autor escultural da maquete, de acordo com planos e desenhos do senhor Silva Costa”, Landowski delega ao arquiteto brasileiro e à comissão católica “poderes para conceder as necessárias autorizações para as reproduções da imagem da maquete”. No segundo, de 2006, sua herdeira também confirma que os direitos foram dados ao arquiteto carioca. Mas a família francesa agiu rápido e impediu que aquela senhora fosse a um cartório de Paris, acompanhada de Bel, para que sua assinatura fosse reconhecida.
Pelo visto, a briga ainda deve durar mais oitenta anos. A decisão judicial favorável à H.Stern não elucidou o principal: saber de quem é o domínio da imagem. Sem essa jurisprudência, os herdeiros de Landowski continuam com caminho aberto para seguir reclamando sua paternidade.