Comida é arte: a importância do desenho no processo de criação dos chefs
Alquimistas de sabores, os mestres-cucas também se aventuram a rascunhar seus pratos, um modo de materializar as ideias que mais tarde irão à mesa
Um pouco deste ingrediente aqui, uma pitada do outro ali, adiciona-se um cítrico para conferir acidez e dá-se uma fritada para alcançar aquele crocante. É assim, a partir de um repertório de sabores e texturas combinados a altas técnicas culinárias, que uma receita vai evoluindo na cabeça de um chef. Mas engana-se quem pensa que todo o trabalho se desenrola entre a bancada e o fogão.
Além dos testes e ajustes na panela, é preciso dar forma à criação, uma cara ao prato, e é aí que os mestres-cucas se põem a desenhar para materializar suas ideias. Trata-se de um caminho para organizar as coisas, já que os ingredientes são pincelados na ordem em que devem ser montados e a estética do que vai à mesa é concebida.
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O Rio está repleto de artistas das panelas — nos dois sentidos: foram parar no papel, por exemplo, o queijo de castanhas com carvão ativado servido com cracker de gergelim, picles de rabanete, chutney de frutas vermelhas, pimenta-rosa caramelada e pó de beterraba da chef Tati Lund, do .Org Bistrô, na Barra; o ceviche de frutos do mar com toques contemporâneos de Pedro Coronha, à frente do novíssimo Mäska, em Ipanema; e as arrojadas misturas inventadas pelo francês Camilo Vanazzi na cozinha do sofisticado Emile, no Hotel Emiliano, fincado à beira da Praia de Copacabana.
Tal qual um arquiteto que planeja o ambiente, os chefs usam seus traços para indicar o posicionamento de cada elemento (proteína, molho, guarnição, decoração), visualizar cores, volumes e proporções e, em alguns casos, até as texturas — um hábito que se arraiga no universo gastronômico na medida em que ele se sofistica. “Quando você desenha a ideia, deixa visível à equipe o que está pensando e otimiza o processo criativo”, explica a chef Andressa Cabral, sócia do Meza Bar e uma das adeptas dos rascunhos culinários.
Especialista em design thinking — que se refere a métodos do design para buscar soluções inovadoras de forma colaborativa —, ela não usa cores nos croquis, mas anexa a eles um moodboard (uma espécie de estudo de imagens coloridas para inspirar) e um mapa sensorial (lista de palavras que traduzem as emoções que quer despertar à mesa).
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A curiosidade em torno de suas ilustrações fez com que ela passasse a compartilhar no Instagram a receita esboçada e depois finalizada, combinações como o pirarucu selvagem em manteiga de castanhas, cuscuz de farinha, ovinha com cupuaçu e beurre blanc de tucupi, apresentado à plateia de uma conferência sobre sustentabilidade em Lyon, na França, na pré-pandemia.
Conhecida nos tempos de escola pela enorme coleção de canetinhas, Nathalie Passos, do Naturalie Bistrô, levou à faculdade de gastronomia o hábito de rabiscar. “Além do lado lúdico, tem o prático. Sabe aquela coisa ‘não entendeu, então desenha?’ É uma maneira mais clara de mostrar ao time o que está na minha cabeça”, fala a chef, que acrescenta aos esboços instruções como a cor da louça e números indicando a ordem em que cada elemento deve ingressar na montagem. “Estar com caneta na mão é tão importante quanto estar com uma panela”, afirma.
Na confeitaria, uma ciência exata onde cada detalhe faz toda a diferença, a caneta é ainda mais importante. Chef pâtissier premiado, com passagem por restaurantes como Oro e Lilia, Henrique Rossanelli trouxe o hábito do tempo em que trabalhou com Lucas Corazza, confeiteiro e jurado do programa Que Seja Doce, do GNT. O patrão e mentor tinha um quadro na cozinha diante do qual o expediente começava. “Ele escrevia ali o nome do doce e mostrava etapa por etapa da receita, enquanto ia explicando como devíamos fazer. Era nossa rotina”, lembra Rossaneli.
Apesar de se difundir cada vez mais com o avanço das técnicas culinárias e os restaurantes de alta gastronomia, os desenhos culinários, na verdade, remontam a um tempo em que nem sequer existia fotografia. O francês Marie-Antoine Carême (1784-1833), lembrado como o chef dos reis e o rei dos chefs, pai de boa parte dos molhos do quais todos os outros derivam até hoje, já tinha o hábito de esboçar suas invenções e deixou um vasto registro de memoráveis criações.
Ele dizia que “as finas artes são cinco em número: pintura, escultura, poesia, música e arquitetura, este o principal ramo da pâtisserie”. Para erguer suas famosas pièces montées, por exemplo, aquelas sobremesas altas e de variadas camadas de açúcar, marzipan e massa de bolo, o cozinheiro extraía ideias de livros de arquitetura neoclássica que consultava na Bibliothèque Nationale e transferia suas inspirações para o papel. Só então começava a modelar os ingredientes doces no formato de templos, pirâmides e ruínas antigas, servidos depois à alta sociedade parisiense.
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Na maior parte das vezes, os traçados não se notabilizam pela técnica, afinal estamos falando de cozinheiros, não de artistas plásticos. Mas há casos em que o talento nessa seara se revela. Por mais de três décadas, o chef japonês Itsuo Kobayashi tracejou os pratos que preparava num centro de suprimentos para refeições escolares em Saitama, no noroeste de Tóquio. Seus diários, cheios de registros feitos a mão, coloridos e minuciosamente detalhados, descrevem receitas, os insumos utilizados e até o sabor de cada criação.
São dezenas de cadernos com tigelas de lámen, tempurás e os mais distintos tipos de bentô, as tradicionais marmitas deles, que ganharam status de arte, representadas na galeria Kushino Terrace, na cidade japonesa de Fukuyama. No ano passado, foram parar na badalada feira Outsider Art Fair, em Nova York — as “obras culinárias” de Kobayashi foram comercializadas por até 3 000 dólares.
Os esboços de Elia Schramm também deixarão em breve os bastidores. Nascido em Genebra, na Suíça, o chef prepara um livro de receitas sobre o Babbo Osteria, seu primeiro restaurante-solo, que será inaugurado em Ipanema no segundo semestre.
No lugar de fotos, ele optou por ilustrações. “Queria que o livro trouxesse a tradição dos preparos artesanais, da comida de casa, o fatto a mano (feito a mão, em italiano), que é o conceito da casa nova. E os desenhos proporcionam isso, trazem essa sensação”, diz ele, que se recorda dos desenhos de sua tia-avó, Germana Schramm, doceira de mão-cheia. “A gente come primeiro com os olhos, depois com o olfato e, por fim, com o paladar. Quando crio, faço o caminho inverso. Penso primeiro nos sabores, mas a apresentação é essencial, pois ela guia o comensal para que ele tire o máximo proveito da experiência.”
Essa é a premissa fundamental de um campo que vem ganhando espaço na indústria de alimentos: o food design, matéria que se debruça sobre elementos visuais e sensoriais na elaboração dos alimentos. A ideia não é só aprimorar a estética, mas criar funcionalidade e captar a atenção — e o paladar. A arte está a serviço da boa mesa.
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