É coisa nossa: a coquetelaria popular brasileira está nos balcões

O movimento de valorização de matérias-primas e bebidas locais dá vida ao novo movimento das coqueteleiras na cidade

Por Pedro Landim
19 abr 2024, 06h00
O mixologista Igor Renovato e o sócio Raí Mendes, do Suru Bar: o uísque cedeu a vez à jurubeba, vinho de ervas típicas do Norte e muito comum nos botecos
Suru Bar: Igor Renovato e Raí Mendes na casa onde o uísque dá vez à jurubeba (Rodrigo Azevedo/Divulgação)
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Joga dendê no meu vatapá, joga dendê no meu… cosmopolitan? O tradicional óleo vegetal feito a partir da palmeira da espécie palma-de-óleo, quem diria, se juntou a outros ingredientes da vasta biodiversidade brasileira para protagonizar um novo movimento dentro dos bares. Acompanhando a onda que há muito encanta os grandes chefs de cozinha, de valorização dos produtos nativos com roupagem contemporânea, bartenders vêm sacudindo a coquetelaria clássica ao preparar drinques com insumos regionais de localidades diversas do país, ao mesmo tempo que trazem para os balcões destilados nacionais, típicos da cultura botequeira e que andavam esquecidos nas prateleiras. “É uma tendência que constrói uma ponte entre balcões mais e menos sofisticados, apostando na união de matérias-primas marginalizadas com boas técnicas”, resume o mixologista Igor Renovato. É ele o precursor carioca dessa ascendente linha e autor das cartas do Botica e do Suru, este com o sócio Raí Mendes, onde o clássico bourbon, apreciado uísque de estilo americano, cede a vez à jurubeba, vinho composto de ervas típicas muito vistas no Norte, que se tornou a estrela do drinque surubeba.

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Bom, bonito e barato: bebida espumante à base da fermentação de maçãs, famosa nas oferendas de ano-novo, está em coquetel do Botica
Bom, bonito e barato: bebida espumante à base da fermentação de maçãs, famosa nas oferendas de ano-novo, está em coquetel do Botica (./Divulgação)

Há muitas variações nesse terreno de infinitas possibilidades, como o drinque do Botica feito em homenagem à Iemanjá com a Sidra Cereser, bebida espumante à base da fermentação de maçãs, famosa nas oferendas de ano-novo. Já o amargo Paratudo, mais uma bebida de fabricação nacional, feita com raízes e típica dos pés-sujos, ingressa em outra das invenções do menu assinado por Igor, com uma vantagem adicional: em uma cidade onde a dose de gim derramada no copão de plástico com energético não sai por menos de 40 reais nos festivais de música, as criações autorais no bar de Botafogo oscilam entre 20 e 36 reais. Assim como um número crescente de profissionais da área, o bartender sorve inspiração nas páginas do livro Da Botica ao Boteco: Plantas, Garrafadas e a Coquetelaria Brasileira, da jornalista e mixologista Néli Pereira, que se dedicou por uma década para mostrar como nossas ervas, cascas e raízes podem ganhar notoriedade no interior das taças. Com bom humor, ela desfia na publicação o mantra “menos grapefruit, mais jurubeba”.

O que se convencionou chamar de a nova coquetelaria popular brasileira reside tanto em bares cultuados pelas jovens gerações como em endereços mais sofisticados. No coração de Ipanema, o Nosso, do chefe de bar Daniel Estevan, importou a atmosfera amazônica para a carta de drinques lançando mão de insumos como tucupi, bacuri e dendê. “Existe este caminho de olhar mais despojado, mas com muita pesquisa e técnica, que valoriza bebidas antigas com novas roupagens”, explica ele. Daniel venceu o prestigiado concurso Campari Bartender Competition com um negroni em infusão de cogumelos ianomâmis e toque de caxiri, mistura indígena fermentada de mandioca desenvolvida com a Companhia dos Fermentados, que fabrica vermutes de frutas e botânicos brasileiros. É a empresa que também produz os espumantes de cambuci que ele adiciona no drinque italiano sbagliato, no lugar do prosecco. “As pessoas querem cada vez mais valorizar o que é local e nativo, seguindo o movimento da gastronomia”, enfatiza o fundador, Leonardo Andrade.

Negroni em infusão de cogumelos ianomâmis e toque de caxiri: criação de Daniel Estevan para o Nosso
Negroni em infusão de cogumelos ianomâmis e toque de caxiri: criação de Daniel Estevan para o Nosso (Tales Hidequi/Divulgação)
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Nessa toada, a aposta deles e de outros é nas “bancs”, vocábulo que designa bebidas alcoólicas não convencionais. No catálogo da Companhia dos Fermentados, há vinho de jabuticaba, sidra de pêssego e espumante de caju, utilizados no lugar de seus semelhantes ou como protagonistas de criações nunca vistas. Leonardo conta que, de um ano para cá, quando começou a atuar no Rio, suas bebidas entraram na carta de mais de 25 bares e restaurantes da cidade, e a cada mês chegam a mais três ou quatro estabelecimentos. Da mesma forma, cresce a presença dos bitters em copos e taças como os da Enraízes, que faz uso de ervas nativas, a exemplo do cumaru, do urucum e da amburana, para compor o produto acondicionado em pequenas garrafas. Delas, os barmen retiram um poderoso ingrediente aromático que se utiliza em gotas nas receitas. “Quando você leva para um bar estrelado europeu uma boa cachaça, um fermentado brasileiro ou um bitter diferente, o pessoal fica louco. Vejo uma revolução em curso aí”, avalia o craque Alex Mesquita, à frente do laureado Elena, no Horto. Ele produziu para o bar uma carta que privilegia bebidas do mundo inteiro. Adivinhem a mais vendida? A cachaça, claro, abraçada a frutas tropicais no drinque cajueiro.

Revolução em curso: Alex Mesquita, do Elena, revela a fama dos insumos brasileiros no exterior
Revolução em curso: Alex Mesquita, do Elena, revela a fama dos insumos brasileiros no exterior (Tomás Rangel/Divulgação)

Mesmo coquetéis brasileiros que ficaram esquecidos com a invasão de negronis, fitzgeralds, cosmopolitans e suas variações nos últimos anos estão retornando sob o impulso da valorização do que é “coisa nossa”. O célebre caju amigo, inventado na década de 1970 no extinto bar Pandoro, em São Paulo, tornou-se obrigatório nas mais distintas casas, assim como conterrâneos como o macunaíma, à base de cachaça, limão e fernet, confeccionado no também paulistano Boca de Ouro, que teve sua história contada recentemente no site Punch, referência global em coquetelaria, de Nova York. Isso sem falar no rabo de galo, que promoveu o casamento de vermute e cachaça nos anos 1950 e acaba de entrar na lista da International Bartenders Association, em meio a uma centena de clássicas receitas do mundo inteiro. Prova de força, o portal Mixology News registrou 324 bares brasileiros com o rabo de galo na carta, além de 22 na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia. Esses coquetéis, aliás, andam fazendo sucesso tanto no Suru Bar, na Lapa, como na efervescente calçada do Chanchada, em Botafogo, que aproveitou para transformar o célebre fitzgerald em “senhor geraldo”. Eis os novos e agitados tempos etílicos.

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Clássicos de botequim

Bebidas populares de ervas e raízes ganham coqueteleiras chiques

Paratudo
(./Divulgação)

Paratudo
O nome se refere ao poder medicinal das ervas e raízes amargas como jurubeba e quassia, na bebida mineira de 1951, que tem fama de afrodisíaca e digestiva. De sabor intenso, é considerada um parente distante do fernet, entrando em drinques como o macunaíma.

Jurupinga
(./Divulgação)
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Jurupinga
Apesar do nome, não é pinga. Trata-se de uma bebida clara, leve e adocicada, feita de vinho branco em composição com frutas e ervas. Tal espectro aromático tem afinidades com o aperitivo francês Lillet, ingrediente do famoso Vesper, o drinque de James Bond.

Conhaque de Alcatrão
(./Divulgação)

Conhaque de Alcatrão
Não há estante de botequim pé-sujo que não tenha sua garrafa do “conhaque do milagre”. A bebida nasceu no século XX, composta com extrato de alcatrão, que traz a sensação de tosta. É indicada para dar um traço defumado aos drinques, por isso deve ser usada com parcimônia.

Jurubeba Leão do Norte
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Jurubeba Leão do Norte
Cantada por Gilberto Gil e Jorge Ben Jor em canção do mítico LP da dupla, a jurubeba é uma erva do Norte que é o principal ingrediente desse vinho tinto composto. Faz as vezes de um vermute mais seco, e pode-se ousar na criação de um negroni de botequim.

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