A rua das cercas amarelas
O desafio de manter o cidadão carioca em primeiro lugar diante da ocupação privada de espaços públicos

A cidade precisa das pessoas. As pessoas precisam da cidade.
Esta seria uma justificativa aparentemente legítima e óbvia para a proliferação, pós-pandêmica, de mesas de bares de restaurantes do Rio por calçadas. Afinal, as cidades dependem de gente para florescer.
Este uso privado de um espaço público pode, sim, não ser um ato infame, e sim o interesse numa cidade cheia de vida. Há espaço para a regulação, desde que com limites. Só dá certo se uma máxima quase religiosa for respeitada: a calçada, antes de qualquer outro uso possível, é um bem sagrado do cidadão. Sem a regra respeitada, áreas públicas repletas de clientes perdem o sentido. Viram um convite ao caos.
Não é preciso dizer que andar a pé é o modo mais importante de mobilidade de curta distância do Rio e de qualquer outra cidade decente do mundo. A calçada é, ainda, um convite à vida. Flanar pode ser a solução de um dia difícil.
Uma calçada obstruída é o entupimento na artéria de um corpo vivo, a cidade. Com espaços públicos ocupados sem controle, abre-se uma porteira incontrolável. Sem bom senso e regras de civilidade, a farra avança.
Depois que mesas e cadeiras bloqueiam a passagem do cidadão, a sequência do descontrole costuma ser a ocupação sonora do espaço público, com caixas de som voltadas para a rua ou, ainda, música ao vivo em zonas residenciais.
Tomados na mão grande os espaços dos pedestres e os ouvidos dos vizinhos, há bares que vão mais longe no retrocesso civilizatório: privatizam todo o espaço do entorno, como praças, algumas vezes com a autorização do poder público.
Um símbolo dessa ruptura é a Rua Dias Ferreira, no Leblon, bairro mais caro do Rio de Janeiro. Outrora restrita a restaurantes famosos e comércio local, após a crise econômica da pandemia a via se transformou num concorrente de points como Baixo Gávea e Baixo Bota. Cada um com seu público, claro.
Nada contra o novo perfil. Não há como negar que a transformação injetou novas tribos e possibilidades num bairro antes restrito a uma elite pouco afeita ao diferente. Se fosse apenas esse o efeito, teria sido importante para o Leblon e, claro, para uma cidade mais democrática.
Mas não. Boa parte dos estabelecimentos cumpriu o roteiro completo do caos: primeiro, dificultou a passagem dos pedestres, com uma enorme profusão de mesas e cadeiras espalhadas na calçada. Na sequência, instalou caixas de som voltadas para a rua, ao alcance dos ouvidos vizinhos. E, por último (ou não!), deu um golpe de misericórdia no cidadão: bloqueou parcialmente as calçadas, normalmente com cercas amarelas. Isso mesmo, cercas amarelas.
A Dias Ferreira virou a rua das cercas amarelas.
Certa vez questionei o funcionário de um desses estabelecimentos sobre o bloqueio. Ele, claro, não titubeou: temos autorização da Prefeitura para isso. Não duvidei. De todo modo, pedi o documento. Ele entrou no bar e não voltou mais. Autorizado ou não, o problema de flexibilizar o desrespeito às regras básicas de civilidade é a inspiração. Afinal, o caos é uma doença que se espalha como praga.
A ocupação sonora, como já aconteceu nas praias, desdobrou-se rapidamente e virou uma guerra de caixas de som e música ao vivo entre vários estabelecimentos, sem qualquer limite de bom senso ou respeito ao cidadão. Não se escuta música, apenas o ruído de uma guerra por gêneros em alto decibéis. Nessa suja disputa sonora que só tem perdedores, clientes e moradores padecem do mesmo inferno.
Resta esperar que o tão falado choque de civilidade proposto por Eduardo Paes alcance enfim as calçadas do Rio de Janeiro e os ouvidos cansados dos cariocas.
Aí, quem sabe um dia, sem cercas amarelas e sem caixas de som, cidadãos e clientes possam, juntos, fazer da Dias Ferreira um exemplo de cidade equilibrada.