Quem pode matar se arrisca a morrer
Cada arma adicional mantida por um cidadão faz com que todos fiquem mais inseguros, alvo de um projétil
Uma menina de 12 anos treinava tiro com um instrutor todos os sábados. E aí, num dos treinos, ao pegar a arma a menina faz um disparo involuntário e mata o instrutor. Uma tragédia que provavelmente marcou a vida da criança para sempre. Matar alguém não é nada corriqueiro. À época, perguntei horrorizada quem bota uma arma de fogo nas mãos de uma menina de 12 anos? Volta e meia este tipo de notícia surge na imprensa americana. Em notícias pequenas num cantinho de página, para proteger as crianças, acredito.
Recentemente, uma tragédia numa escola deixou 20 crianças mortas, vítimas de uma outra criança – um adolescente de 18 anos, a quem é permitido comprar um objeto de poder letal. Como é um fato que vem se repetindo com frequência nos Estados Unidos da América, onde a posse de armas é quase um culto, instalou um mal-estar grande. Mesmo assim, insiste-se na ideia da posse livre de armas.
Aqui também temos nossas chacinas, diferentes daquelas de lá porque, em geral, promovidas pelo estado contra as comunidades desprivilegiadas, matando indiscriminadamente sem justificação suficientemente crível.
Portar armas não amplia a sensação de proteção. Pode criar uma ilusão de poder e instala a ideia falsa de que o indivíduo deve contar consigo próprio e não com o estado para defendê-lo.
A arma é uma invenção para atirar em outros e matá-los ou, pelo menos para machuca-los o suficiente para neutraliza-los. Mas ninguém precisa de armas, nem a polícia. É difícil entender isto num país em que o estado é agressivo e a morte vem sendo naturalizada.
O argumento de que as armas não são feitas para matar, mas para proteger, caçar (que afinal é matar) e colecionar, é uma justificativa distorcida para o uso – ou a venda – de armas. As fábricas e os negociantes de armas precisam vendê-las. É um dos lobbies mais fortes no Congresso dos EUA. Mas o fato é que as armas são feitas, sim, para matar. São objetos perigosos, fabricados para agredir.
Dizer que as armas são um método de autodefesa é uma falácia. Duvido que uma pessoa consiga usar uma arma com eficiência num momento de nervosismo em que se sente ameaçada. A consequência da ação de matar é um assunto complexo. Matar é uma ação psicologicamente traumática, para profissionais ou não. Alguém que atira e mata e consegue dormir tranquilo está moralmente morto. E aí, sim, torna-se uma ameaça muito perigosa à sociedade.
Cada arma adicional mantida por um cidadão faz com que todos na sociedade fiquem mais inseguros, a mercê de um medo que faz desconfiar de tudo, agredir e criar um ambiente mórbido, em que todos sentem que podem ser alvo de um projétil.
A obsessão por armas é vestígio dos tempos de uma humanidade primitiva, do homem desprotegido das intempéries e com fome, nômade em busca de sobreviver. No século 21, a espécie já controla esse cérebro primordial, reptiliano, e usa sua capacidade de pensar para construir o acervo de conhecimento existente, com sofisticados conceitos científicos, a respeito de seu DNA, de seu lugar no cosmos, de direitos humanos, de cidadania.
As discussões sobre os valores que sustentam sociedades pacíficas e justas são assuntos a serem discutidos na escola para que os jovens se conscientizem de que é possível viver com mais justiça social e econômica e com a aceitação da diferença. Nas escolas, os alunos experimentam situações que sofisticam o pensamento e podem compreender que armas são supérfluas e desnecessárias. Aprendem que ninguém precisa de armas para viver porque existem maneiras civilizadas para resolver os problemas numa sociedade. Ninguém precisa matar ou ser morto.
Em tempos de sites de busca, a escola pode transformar qualquer programa em discussões diárias sobre problemas e questões ético-moral-filosóficas que marcam estes tempos pós-pandêmicos. As novas gerações vão precisar enfrentar muitos problemas deste tipo e precisam aprender a discutir e resolver juntos as melhores soluções para viverem numa sociedade mais harmônica e menos desigual.