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Por Patrícia Lins e Silva, pedagoga
Educação
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As crianças são educadas pela e para a cultura a que pertencem

Não importa onde nasçam ou onde se criam, todas as crianças são capazes de aprender e de refletir sobre a realidade

Por Patricia Lins e Silva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
20 jul 2023, 14h56

Quatro crianças ficaram 40 dias perdidas sozinhas numa floresta da Colômbia depois da queda do avião em que viajavam. Os adultos que estavam na aeronave, entre eles a mãe delas, não sobreviveram.

Apesar da experiência traumática da queda do avião e da morte da mãe, os irmãos – uma menina com 13 anos, dois irmãos de 9 e de 4 anos e um bebê de 11 meses – tiveram a coragem de caminhar pela selva em busca de ajuda, numa área de onças, cobras venenosas e outros animais. De algum modo, conseguiram água, alimento e abrigo. Um feito quase inacreditável, que surpreende pela valentia e persistência das crianças no enfrentamento de situação tão adversa.

A Organização dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana explicou, num comunicado, que a sobrevivência dos irmãos se deveu à relação que os povos ligados à floresta mantêm com o ambiente natural. É uma aprendizagem que começa ainda na barriga da mãe e, bem pequenas, as crianças logo aprendem a encontrar frutos comestíveis e água. Foi esse conhecimento que salvou os irmãos.

Ao buscar estudos sobre educação de crianças em culturas diferentes da nossa ‘cultura do colonizador’, encontrei um relato da antropóloga ítalo-americana Francesca Mezzenzano que conta sua experiência numa aldeia Runa, na Amazônia equatoriana. Ela chegou ao Equador vinda da Europa, com um filho de quatro meses que, como seria esperado na nossa cultura, ela mantinha sempre a seu lado, para atender sem demora a qualquer manifestação de desconforto e até antecipar seus desejos. Os Runa acompanharam com espanto aquele comportamento que para eles era desconcertante. Ela se tornou objeto de riso na tribo.

Sabemos que Francesca cumpria o que a sociedade pós-industrial espera da parentalidade fundada na ideia de que as experiências da primeira infância são cruciais para o desenvolvimento cognitivo e emocional dos filhos. O que os pais fazem, o que falam, o quanto falam, como alimentam, como botam na cama, tudo tem consequências importantes e duradouras no futuro das crianças. É a parentalidade ‘responsiva, natural, com apego, etc..’ que reforça o determinismo da influência dos pais, instados a atender às necessidades físicas e emocionais dos filhos pronta e adequadamente para que tenham uma vida feliz e bem-sucedida. A criança é o centro da família e os pais são atenciosos, proativos, positivos e empáticos. O bebê tem contato físico próximo e contato visual frequente com a mãe. Quando os filhos crescem, os pais cumprem novas práticas, como brincar com eles e estimular a linguagem. Os filhos são considerados parceiros, elogiados nas suas realizações e incentivados a expressarem seus desejos e emoções. A professora de Antropologia Cultural Adrie Kusserow diz que no ‘ocidente’ praticamos um “individualismo brando”, com a autoexpressão, o individualismo e a criatividade como valores centrais e, não por acaso, essas são as qualidades apreciadas na sociedade neoliberal, em que o empreendedorismo, a autorrealização e a singularidade individual são primordiais para o sucesso e a felicidade.

Segundo Mezzenzano, pesquisas sobre a paternidade em outras culturas registram que fora das populações brancas, instruídas, industrializadas, ricas e democráticas (WEIRD) – isto é, a nossa –  as crianças raramente são cuidadas quase que exclusivamente pelas mães e é raro que sejam o centro da vida dos adultos.

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Os Runa consideram que o apego muito exclusivo não faz bem, e as crianças são provocadas com perguntas desafiadoras do tipo ‘o que você vai fazer se sua mãe morrer?’ Acreditam que assim as crianças refletem sobre as incertezas da vida e da morte.

Nossos filhos são carregados dentro da faixa de pano (sling) com o rosto voltado para a mãe, protegido do mundo. As mães Runa fazem o oposto – carregam o bebê dentro da faixa, mas com o rosto voltado o tempo todo para fora, em todos os lugares, da madrugada à noite, com chuva ou sol, no jardim e na floresta, nas festas que duram horas, com barulho forte dos tambores e gritos dos dançarinos. A criança deve ver o mundo a que pertence. Para a vida na tribo, a socialização é base para o que é fundamental: a cooperação, o trabalho e a ajuda mútua.  

As crianças Runa recebem carinho, mas o mundo dos Runa não gira em torno das crianças que não são mantidas num cenário exclusivamente infantil. Nada é organizado para atender a seus desejos e necessidades, ninguém adia um passeio porque o sol está forte demais para um bebê ou criança pequena, os pais não elogiam os esforços dos filhos, não se preocupam se expressam seus sentimentos, não os consideram parceiros iguais de conversa nem se acham obrigados a brincar ou conversar com os filhos. Desde pequenas, as crianças participam plenamente da vida dos adultos, escutam conversas complexas sobre temas difíceis, ajudam nas tarefas domésticas, cuidam dos irmãos menores.  

As práticas de educação Runa visam a transformar as crianças em pessoas que compreendem que sua vontade é uma entre muitas e têm consciência das necessidades alheias e do lugar delas próprias na densa teia de relacionamentos. Essas são as qualidades indispensáveis para viver uma boa vida numa comunidade unida.

Não existe uma educação infantil que seja única, ideal e objetiva. Nossa cultura não aprovaria a criação de filhos das mães Runa, com a amamentação casual, o desmame abrupto, sem brincadeiras organizadas entre pais e filhos nem tampouco conversas, mas os habitantes Runa riam das práticas de cuidado infantil de Francesca com seu bebê, porque as consideravam inadequadas para criar uma pessoa para o contexto de uma  vida comunitária.

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A parentalidade acontece sempre dentro de uma cultura, dentro de um conjunto de práticas que visam a formar uma pessoa para uma determinada sociedade.

Nossos sistemas de ensino ‘oficiais’ promovem o pensamento racional e científico que para nossa cultura é o único que valida a interpretação dos fenômenos da realidade. No entanto, as crianças da Colômbia deram um bom exemplo de que o saber do colonizador não é o único que pode avalizar o conhecimento do real.

Não se trata de trocarmos nosso pensamento racional e ciência por saberes de outras culturas, mas é o caso de reconhecer e entender a existência de outras maneiras de explicar e lidar com a realidade. O envolvimento com diferentes epistemologias permite uma compreensão mais inclusiva e abrangente do conhecimento, do planeta, dos povos e da humanidade.

A relação intensa das crianças colombianas com seu ambiente faz pensar o quanto a nossa escola pode ajudar nossas crianças urbanas a conhecer melhor a sua cidade, suas diferenças econômicas, sociais e culturais e as consequências dessas diferenças. Os professores podem instigar a reflexão sobre sua cultura, promovendo conversas entre os alunos sobre a realidade. Ao ouvir opiniões diversas, conhecer ideias diferentes, ao divergir, discordar, perguntar e pensar, as crianças constroem valores e aprendem a escolher, criticar e a contribuir para a sociedade a que pertencem.

Não importa onde nasçam ou onde se criam, todas as crianças são capazes de aprender e de refletir sobre seu mundo. Quantos professores comentaram e conversaram com seus alunos sobre a façanha das crianças da Colômbia? Quantos perguntaram se elas se sentiam capazes de tomar decisões e assumir responsabilidades, de acordo com sua idade?

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Ao trazer a realidade para dentro da sala de aula, a escola pode formar pessoas que pensam criticamente, solidarias, autônomas e que sabem contribuir para a sociedade em que vivem.

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