Vale-tudo
Volta e meia me perguntam se esses encontros no Café Severino, que tantas vezes reproduzo aqui, existem mesmo ou são inventados. Numa dessas tardes de outono, a cena se repetiu, mas dessa vez no próprio café, àquela hora quase deserto. Uma senhora, uma bela mulher, vale dizer, depois de varrer com os olhos toda a […]
Volta e meia me perguntam se esses encontros no Café Severino, que tantas vezes reproduzo aqui, existem mesmo ou são inventados. Numa dessas tardes de outono, a cena se repetiu, mas dessa vez no próprio café, àquela hora quase deserto. Uma senhora, uma bela mulher, vale dizer, depois de varrer com os olhos toda a sala, caminhou até a minha mesa e me perguntou, sem rodeios:
— Ah, então o senhor vem mesmo aqui todos os dias?
— Não todos. Nem sempre venho aos domingos.
— Interessante. Pensei que o seu Café Severino fosse um cenário, que só existisse nas suas crônicas.
Não estranhei, se querem saber. Algumas pessoas aparecem mesmo por lá com a intenção de checar a existência do lugar. Como ela continuasse a inspeção e me olhasse com curiosidade, fiz o que manda a boa educação: ofereci uma cadeira, que ela aceitou prontamente.
— Que horas começa?
Eu ri, claro.
— A senhora está achando que o que fazemos aqui é parte de um reality show?
— Mais ou menos isso.
Eu resolvi manter a conversa. Pensei que, quando alguns amigos começassem a chegar, ela ia se tocar.
— Não tem hora nem para começar, nem para terminar. Nem dia certo, nem sempre de dia, nem sempre de noite. E não se combina nada. São encontros voluntários, de velhos amigos velhos, que se reúnem informalmente e jogam conversa fora.
— Sem pauta?
— Isso mesmo. Vale qualquer assunto.
— Um vale-tudo!
— Exatamente.
— Me diga uma coisa: hoje vai ter reunião?
Eu não estava acreditando naquela cena.
— É que eu quero pedir ao senhor que me deixe participar.
A partir dessa pergunta, minha cordialidade passou a ser uma missão humanitária.
— Quando chegarem — se chegarem! —, eu pergunto, e, se concordarem, a senhora será nossa convidada.
E como ninguém chegava, ela ia ficando desapontada, decepcionada mesmo, o que me afligia.
— Posso também fazer uma pergunta?
— Claro.
— Qual a razão do seu interesse?
— É simples.
E me disse então que, cada vez que lia a crônica na Vejinha, ficava surpresa com o fato de esses encontros com os amigos se realizarem durante a tarde e se prolongarem às vezes por duas, três horas. E indo para o desfecho:
— Desculpe a franqueza, se não quiser responder, tudo bem, mas… me diga: nenhum amigo seu trabalha?
***
Felizmente, uma tempestade começava a ameaçar o fim de tarde. E felizmente também não apareceu ninguém. Fingi não ter ouvido a pergunta e emendei.
— Só não lhe ofereço uma carona porque moro na próxima rua e vou andando.
— Fique à vontade, eu vou esperar o meu marido, que ficou de me pegar.
E ao se despedir:
— Meu nome é Tereza. E vou aparecer sempre, até conseguir participar de uma dessas reuniões que o senhor faz com os seus amigos.
— Claro, claro!
E saí andando, quase correndo e sendo atropelado por uma bicicleta.
No caminho, vi dois meninos atracados numa briga de moleques. Lembrei do vale-tudo com que ela batizou as nossas reuniões no Severino. E também das brigas de rua da adolescência.
— Vamos começar. Vale tudo, heim?
E invariavelmente o outro dizia:
— Menos xingar a mãe!