Sem mistério
— O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível — declarou o Raul, garantindo ser de Oscar Wilde essa afirmação. — Uma frase banal. Nem parece dele — declarou o Serjão. — Está em O Retrato de Dorian Gray — insistiu o Raul. — Dorian Gay — aparteou o Aléssio, achando-se […]
— O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível — declarou o Raul, garantindo ser de Oscar Wilde essa afirmação.
— Uma frase banal. Nem parece dele — declarou o Serjão.
— Está em O Retrato de Dorian Gray — insistiu o Raul.
— Dorian Gay — aparteou o Aléssio, achando-se muito espirituoso, mas dando, na verdade, uma demonstração da sua conhecida homofobia.
Silvana foi para cima do marido:
— Você me dá vergonha.
— Êêê, não posso brincar, não?
— Vamos deixar o Raul terminar o que estava falando?
E a tarde voltou à calma, sem impedir que o casal trocasse um olhar de irritação, confirmando o que já vínhamos registrando: o casamento deles estava fazendo água, ameaçando afundar.
O Raul retomou o assunto:
— É que eu estava pensando na sua última crônica, a da mãe que apareceu para a filha na maternidade, como se fosse uma enfermeira.
— Adorei — disse a Carla —, mas me deu medo. Eu não gostaria de ver nenhuma pessoa que já tivesse morrido, por mais querida que ela fosse.
— Pois eu ia amar — garantiu a Silvana.
— Vai, Raul, continua.
— Tenho uma história que se parece com a que você contou na crônica. Aconteceu comigo e eu nunca contei a ninguém.
Fez uma pausa, olhou-nos com seriedade e continuou:
— Eu tinha 12 anos. Minha avó, mãe da minha mãe, morava com a gente. Era ela que me acordava todas as manhãs, por volta das 6 horas. Dizia: “Vamos, preguiçoso, levanta. Não pode perder a primeira aula, de matemática. Você anda mal na matéria e, se não melhorar, vai ser reprovado no fim do ano”. E lá ia eu, resmungando, me arrastando, tropeçando nas coisas, morrendo de sono.
— Já estou ficando nervosa — interrompeu a Carla.
— Foi aí, numa certa manhã de abril, que a minha linda avó não me acordou. A razão era simples: ela também dormia. Só que para sempre. Naquele dia eu perdi a primeira aula. A de matemática.
Tomamos um gole do vinho branco.
— Numa nova manhã, no fim daquele mesmo ano, já então com o despertador substituindo a minha avó, eu vi quando ela entrou no meu quarto, aproximou-se sorrindo e sussurrou no meu ouvido: “Vamos, preguiçoso, levanta. Vai chegar atrasado à escola e perder a prova de matemática”. Só aí me dei conta de que não era apenas uma primeira aula. Era a prova de fim de ano! Tremi, apavorado. “Não tenha medo. Vou estar perto de você. Confia.” Saltei da cama, tomei um banho, engoli o meu café e cheguei à escola pontualmente.
— E foi reprovado, claro — falou rindo o Aléssio.
— Não. Passei. E com boa média. Mas devo confessar que os dois últimos problemas da prova, os mais difíceis, só acertei porque a minha avó soprou os resultados no meu ouvido.
— Ah, não acredito nisso de jeito nenhum — aparteou mais uma vez o chato do Aléssio.
Silvana, emocionada com a história, mandou ver:
— Cala a boca, cara!
— Ah, qual é? Tenho de acreditar que isso é verdade?
E o Raul, já se levantando:
— Comecei com Oscar Wilde e fecho com Machado de Assis: “A verdade pode ser às vezes inverossímil”.
E saiu do Severino para ir ao dentista, onde tinha hora marcada.