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Por Luisa Mascarenhas, psicóloga e escritora
Autora do livro 'A Vida Virtual Como Ela é'
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A vida virtual nunca foi tão humana como em tempos de Covid-19

Nesse cenário apocalíptico, angustiante e incerto, a internet vem mostrando, mais do que nunca, sua face generosa, agregadora, solidária e afetiva

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Atualizado em 1 abr 2020, 12h56 - Publicado em 1 abr 2020, 10h31

Há anos oscilamos entre o amor e a repulsa às redes sociais e aplicativos, que revolucionaram nossa forma de nos comunicar e de existir. Tendo tanta tecnologia e tantos recursos digitais em nossas mãos 24 horas por dia, mudamos completamente nosso estilo de vida. Essa revolução digital tem tido um custo altíssimo, detonando relações, devorando nosso tempo, nosso descanso, nossos momentos de introspeção, nossa capacidade de estarmos onde estamos. A tela do celular e outras telas parecem ter um poder hipnótico e viciante.

Estávamos já (eu pelo menos) indigestos com tanta conexão virtual e desconexão “real”, de saco cheio de tanta exposição, exibicionismo, narcisismo e tanta, mas tanta, perda de tempo com assuntos irrelevantes. Fora toda a disseminação de um clima beligerante barra pesada. Haters pipocando por toda parte, fake news, e uma polarização política grave e destruidora de afetos, que se materializa através das redes sociais e é por elas potencializada. A relação de muitos de nós com a vida virtual estava em plena crise, quando o mundo praticamente desabou em nossas cabeças. Uma “explosão nuclear” chamada coronavírus. O pavor se instalou, o medo, a incerteza, o isolamento. Uma situação terrível e nunca antes vivida.

E eis que a vida virtual, em pleno ambiente apocalíptico, encontra sua redenção ao mostrar todo o seu potencial e sua face mais bondosa. Se nos sentimos em diversos momentos consumidos emocionalmente pelas redes e aplicativos como WhatsApp e outros, agora parece que tudo valeu a pena. Aturar tantas selfies com olhar de psicopata, testa desproporcional e biquinhos sexies, vendedores mandando mensagens achando que são seus melhores amigos, posts de biquíni ou sunga com frases sobre Deus e sobre a existência, muita filosofia de bolso, citações de frases superficiais e cafonas atribuídas à Clarice Lispector, Pedro Bial e muitos outros. Suportar recados dados para alguém específico disfarçados de lição de vida para todos, muita gente casada tentando parecer feliz, muita gente solteira tentando parecer feliz, muita gente feliz duvidando da própria felicidade ao se comparar com a vida idealizada das redes. Valeu a pena. Tá certo, não foi fácil, mas valeu.

Foi duro digerir tantas fotos de comida, os pedidos inconvenientes de nude, os erros do corretor que nos colocam em situações embaraçosas, o tempo desperdiçado no Tinder e afins vendo uma galeria de gente bizarra, e batendo papo com gente estranha. Mas valeu. Cada minuto. Aturar os grupos enormes e incessantes, os compartilhadores de desgraça, os eternos viajantes que esfregam cada segundo de cada viagem nas nossas caras. As discussões estressantes e que nunca levam a nada a não ser ao bloqueio de amigos, as crises de ciúmes e decepções com os parceiros amorosos. Tudo valeu a pena. Os diversos pedidos de amizade da mesma pessoa com perfis diferentes, coisa que jamais fui capaz de entender, a falta de atenção de quem está do nosso lado, sempre pendurado no celular. A perda de tempo stalkeando os outros, a ansiedade gerada por posts malsucedidos, a pornografia afetiva a que somos submetidos diariamente, com declarações de amor entre casais supostamente apaixonados. Os partos praticamente compartilhados na íntegra, extinguindo por completo a noção do que há de mais íntimo: chegar ao mundo. Os prints infinitos enviados pelos amigos de conversas absolutamente desinteressantes, as ignoradas de gente online, as carências de gente que não atura nos ver online e esperar. Tudo valeu. Tudinho.

Gente querendo chamar atenção saindo do grupo, prestadores de serviço sensualizando nas fotos de perfil, correntes que mais parecem ameaças espirituais aos que não repassarem, áudios infinitos, fotos “espontâneas” altamente planejadas e filtradas, fotos “de paisagem” para poder mostrar a barriga chapada ou o silicone recém-colocado, as pirações com o “visto por último” e os tracinhos cinzas e azuis. Curtir e comentar posts e fotos para dar uma força moral aos amigos em fase insegura, mesmo achando tudo insano ou esquisito. Não foi fácil, mas valeu. Pessoas dando opiniões em assuntos sobre os quais elas nada sabem, gente boçal se achando formador de opinião. Os causadores de plantão, sempre postando textões polêmicos, querendo mexer com os ânimos alheios. Aturamos com desgosto, mas valeu. Fomos marcadas em fotos que não queríamos que fossem publicadas, vimos mais do que gostaríamos, mostramos mais do que deveríamos. Casamentos acabaram, muitas traições aconteceram e foram descobertas. A vida virtual dá um empurrão forte para os conflitos conjugais, a gente sabe. Mas, olha, valeu cada segundo. É essa a sensação que tenho agora.

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Estamos unidos nesse momento histórico pela comunicação virtual. Conseguindo manter o contato com aqueles que tanto amamos. Estamos nos sentindo próximos, mesmo sem poder chegar perto da família e dos amigos. Temos serviços que facilitam absurdamente nossas vidas numa situação como essa que estamos vivendo. O mundo virtual parece que estava “pelas tampas” com tantas críticas e tanta nostalgia dos velhos tempos, e resolveu mostrar mais do que nunca a que veio. “Chupa, mundo.”

Falamos mal, esculhambamos essa nova forma de viver. E, vamos combinar, tínhamos razão. Continuaremos tendo. Mas nunca mais conseguiremos menosprezar o poder das ferramentas que temos em mãos. Nunca vamos esquecer o quanto o mundo virtual fez por nós. Pelo menos da minha parte haverá uma gratidão eterna. Imagina essa epidemia, sem termos todos esses recursos? Os que estão em quarentena, conseguem alimentar o corpo e a alma, graças à tecnologia. Os doentes, sem poder ter contato físico com os familiares, mantêm a comunicação por celular. E é através de telas que muitos se despedem de seus entes queridos. Como não valorizar algo tão poderoso? Obrigada, vida virtual. Por tudo isso e por todas as informações que estamos recebendo, todos os movimentos de solidariedade que estão sendo possíveis, toda a troca de afeto e de experiência, as dicas compartilhadas, todas as tarefas e trabalhos que temos conseguido realizar à distância.

Um dos momentos mais bacanas que vivenciei nesse período aqui em casa com meus filhos foi o primeiro encontro da turma de um deles através de uma ferramenta de reuniões. A cara de cada aluno podendo rever os amigos, trocar as vivências, estar mais perto de seus pares, foi inesquecível. O “parabéns” cantado para a amiga que havia feito aniversário, mesmo à distância, fez bem a todos. Foi emocionante. Depois desse, já fizemos outros encontros. Adultos e crianças têm podido se ver e celebrar, mesmo de longe. Um dos amigos da escola fez uma festa virtual. Os pais com o aniversariante e o irmão dele em casa, uma mesa bonita com bolo e doces, e todos podendo participar. Fizeram um vídeo lindo de fotos dele com a família e os amigos. Uma forma de tentar celebrar a vida e os afetos num momento tão duro. O menino estava contente. Esse aniversário certamente foi diferente de todos e jamais será esquecido.

Pessoalmente, tenho também descoberto o poder das chamadas de vídeo. Sempre detestei. Mas agora estou curtindo e vendo que, além de ajudar a trazer as pessoas para mais perto, tem até uma graça diferente dos encontros para tomar chope e bater papo. Acho gostoso ver meus amigos dentro de casa, em sua rotina, de roupa largada. Tem um clima de intimidade que me faz bem.

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O mundo virtual tem sido um alento num momento trágico. Eu confesso que os memes, vídeos e áudios de humor têm me ajudado muito a levar os dias com um pouco mais de leveza e alegria. Não é fácil superar o estrago emocional de cada notícia triste que recebemos. Rir se mostrou mais do que nunca uma catarse fundamental, uma forma de expurgar nossos medos e angústias. A arte também tem invadido lindamente nossas redes sociais e se feito presente, possibilitando que possamos transcender as paredes de nossas casas e vislumbrar o sublime.

Vamos em frente. Enquanto os abraços, os beijos, os encontros e as celebrações não podem ser pessoalmente, vamos tirando o máximo de proveito de tudo que o mundo digital tem a nos oferecer. Quem sabe, num futuro próximo, não conseguiremos mudar nossa forma de usar essas ferramentas todas? Quem sabe a gente não consiga usar as redes e os aplicativos de forma mais sensível, mais gentil, mais generosa, menos narcisista, mais criteriosa e responsável? Estamos tendo tempo de perceber o valor do que temos aqui e vendo tudo de positivo que esse universo tem a nos oferecer. As oportunidades sempre estiveram disponíveis, a gente é que vinha fazendo um péssimo uso.

É inegável que viver tem sido um desafio, e olha que ainda é apenas o começo desse maremoto mundial. Estamos todos com medo, estressados e perdidos diante dessa nova realidade. Mas temos uns aos outros. E temos esse universo aqui, o “virtual”, que nunca foi tão real, afetivo, humano e necessário.

Coragem, amor, força, serenidade, fé e muita saúde para todos nós.

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