Mafalda, Patagônia e o consumo consciente
Um exemplo de como o capitalismo pode tentar ser compatível com a sustentabilidade do planeta
Os questionamentos da pequena Mafalda ganharam ainda mais destaque com a morte de seu criador, o genial Quino. Seu estilo nem sempre rende gargalhadas ou mesmo sorrisos, mas é garantia de reflexões. Sagaz e contestadora, Mafalda tem o dom de tocar em feridas, inclusive nas feridas da economia capitalista, entre as quais o consumismo, implícito no trecho da tirinha que ilustra esta coluna. Neste caso, a pergunta que fica martelando é: o sistema capitalista é compatível com o consumo responsável e sustentável? Como minha bola de cristal está no conserto, prefiro comentar essa possibilidade a partir das ações de uma empresa inspiradora, talvez um símbolo do capitalismo consciente: a Patagônia.
A primeira vez que a Patagônia me chamou realmente a atenção foi em 2011, quando, em plena Black Friday, lançou uma anti-campanha, a “Don’t buy this jacket”, para evitar o consumo desnecessário. Ousadia. Pesquisando um pouco mais sobre a marca, descobri que nasceu na Califórnia a partir de uma simples manufatura, especializada em material para escalada em rocha, no fim da década de 1950. Em seu site, define-se como designer de roupas e aparelhos para esportes silenciosos: montanhismo, surfe, esqui e snowboard, fly fishing (pesca com isca artificial) e corrida em trilha. A escolha do termo “silenciosos” para caracterizar esses esportes é encantadora, pois a recompensa das atividades em questão é a própria conexão com a natureza.
A natureza está implícita e explícita na missão da empresa, sem esquecer da excelência do produto. Desde 1985, a Patagônia direciona 1% das vendas para a preservação e restauração do meio ambiente. A iniciativa é louvável, mas não é pontual. Basta um giro pelo site para perceber que estamos navegando em um modelo que pensa e implementa soluções para a crise ambiental, para um mundo melhor, sustentável. Conceitos como economia circular estão na base dessa cultura corporativa.
Patagônia tem propósitos, mas não é uma ONG, é uma empresa capitalista. Emprega, produz, vende, fatura, paga impostos. Polui e tem pegada ambiental. De modo transparente, direciona tempo e dinheiro para compensar os danos que causa ao ambiente. Esse ambiente, afinal, é o mesmo que permite a prática dos esportes para os quais cria roupas e equipamentos.
Em tempos de ESG – a necessária sigla do momento no mercado acionário, que resume critérios de conduta das empresas nas áreas ambiental, social e de governança -, o site é repleto de mensagens, compromissos e ações nesse sentido. Atualmente, o destaque é político, com um apelo da marca para que os americanos votem nas próximas eleições, de olho no compromisso ambiental (ou não) dos candidatos. Na home page, está o link para o premiado “Public Trust“, “um filme sobre a briga por terras públicas americanas”. O filme conta como o presidente Donald Trump teria liberado ilegalmente terras federais para exploração de petróleo, mineração e outras atividades que podem destruir refúgios de uma natureza mais selvagem, protegida. A guerra, judicial inclusive, e as críticas a Trump se referem a áreas como Bears Ears National Monument e Grand Staircase Escalante National Monument, entre outras.
Coincidentemente, a Mafalda de Quino nasceu na Argentina, país que abriga parte de uma outra Patagônia – a região que inspirou a marca. Mafalda costuma interagir com um globo terrestre ao expor suas inquietudes quanto à realidade política, econômica e social. Em uma tirinha, por exemplo, o globo aparece deitado em uma cama, e a garotinha pede silêncio por haver um “doente” em casa.
A história do fundador da Patagônia está no livro “Lições de um empresário rebelde – Como a vida ao ar livre ensinou Yvon Chouinard a empreender de forma generosa, responsável e produtiva”. Com suas armas, uma empresa pode melhorar o mundo. Com outras armas, Quino fez o que estava ao seu alcance.