Retrospectiva teatro, por Claudia Chaves: tudo acabou em samba
A crítica elege seus melhores de 2024

Foram mais de 100 peças entre choros, ranger de dentes, risadas, surpresas e decepções. Na verdade, só alegria absoluta de ver como o setor teatral — que envolve dezenas de milhares de pessoas, com ou sem patrocínio — nos deu grandes momentos.

O ano começou com a história de uma brasileira, “Lady Tempestade”, com Andréa Beltrão retratando a história de uma lutadora, Mércia Albuquerque, considerada a maior advogada nordestina de presos políticos da ditadura militar de 1964. E o último espetáculo do ano a que assistimos foi “O Tradicional e o Moderno na Dança do Mestre-Sala e da Porta-Bandeira”, de Luiz Antonio Pilar, com texto de Leonardo Bruno, uma obra emocionante, didática, pedagógica, que nos ensinou sobre o Brasil. ]

A absoluta brasilidade, nossos valores, nossos artistas que compuseram o espetáculo do ano, “Eu não me entrego, não!”, o fenômeno do ano, que nasceu quando Othon Bastos entregou 600 páginas de sua história em uma sacola de supermercado ao autor, diretor e produtor Flávio Marinho. A trajetória de Othon se transforma em uma verdadeira odisseia do que é ser um ator brasileiro, nordestino e que o público absorve com a certeza de que a vida é bonita. Aliás, temos teatro de excelente qualidade, com a reencenação de “A Falecida” (Camila Morgado protagonizando a montagem de Sérgio Módena para o clássico de Nelson Rodrigues), as peças encenadas nos apartamentos, em espaço de saúde mental, não se entregou a receitas fáceis, às cópias estrangeiras. Muito pelo contrário, foi um ano de casas cheias, e podemos dizer, com orgulho: o teatro nacional conhece o Brasil.
Aqui, a coluna criou a sua lista de “premiados” do ano:
Hors-concours: o fenômeno Othon Bastos em “Eu não me entrego, não!”;

Melhor autor: Flávio Marinho, o consagrado autor, consegue compor com um texto emocionante os vários episódios do ator Othon Bastos, desde sua infância até os dias atuais em “Eu não me entrego, não!”;

Quero mais: com microtemporada nos últimos dias de dezembro, “O Tradicional e o Moderno na Dança do Mestre-Sala e da Porta-Bandeira”, idealizada por Luiz Antonio Pilar, com texto de Leonardo Bruno, conta a história de vida e profissional do casal de mestre-sala e porta-bandeira Rute Alves e Julinho Nascimento, campeões de vários carnavais;

Bis, quero bis: Débora Falabella encarna, em dois textos completamente diferentes, a mulher vítima do abuso e do estupro. “Prima Facie” é um monólogo de 100 minutos que deixa a plateia totalmente atenta para que não se perca nada da poderosa e vital atuação de Débora. Em “Neste mundo louco, nesta noite brilhante”, a atriz repete a competência de “Prima Facie”, coisa rara da atriz, capaz de dominar e emocionar a plateia;

A obra de arte: Suzana Nascimento em brilhante atuação, sempre capaz de entregar momentos únicos, como “Em nome da mãe”, sob direção de Miwa Yanagizawa;

A melhor invenção: a personagem-memória em “Eu não me entrego, não!”. A atriz Juliana Medella atua como uma “memória” em cena, fazendo observações às falas de Othon, permitindo que ele permaneça no personagem, segundo Flávio Marinho, diretor do espetáculo, “igual à própria memória. Isso deu um colorido e um charme à peça”;

O coadjuvante principal: Thelmo Fernandes, em “A Falecida”, de Nelson Rodrigues, peça com a protagonista evidente, Zulmira, mas o ator compõe o Tuninho de forma primorosa, o marido meio perdido, fixado em futebol. Da difícil dramaturgia de Nelson, Thelmo empresta um de seus melhores intérpretes;

Ladies Tempestade: a explosão de Andréa Beltrão revivendo a saga da advogada Mércia Albuquerque, cujo apelido era Lady Tempestade, foi seguida de peças que falaram dessas lutas das mulheres pela arte, a maternidade e contra a violência, o machismo, a exclusão; “Palavras de Mulher”, de Sérgio Fonta, fez um imaginário encontro entre quatro grandes autoras: Clarice Lispector, Carmen Silva, Hilda Hilst, Eneida de Moraes; “A cena (não) muda” conta as dores de mulheres pretas contra todo tipo de violência: política, doméstica, policial;

Sem medo de ser feliz: a peça “Língua” é centrada na questão da falta de comunicação, em uma trama que se passa no aniversário de um jovem surdo. A partir dessa linha, o que vemos são ótimas atuações, a importância dos afetos, que consegue superar todos os obstáculos com a ótima atuação de Ricardo Boaretto;

Bate palmas com vontade: sob a direção de Inez Vianna, a Cia. Omondé tem como foco encenar textos de autores brasileiros e dialogar com os temas que mexem com nossos corações e mentes. Os 15 anos da Cia. são comemorados com a peça “Último Ensaio”;

5 falas são o suficiente: em “A Falecida”, Stella Freitas tem cinco linhas no papel da cartomante, quando encontra a protagonista Zulmira (Camila Morgado), num texto absolutamente prosaico, com total brilhantismo;

Teatro completo: “A Palavra que Resta”, baseada no romance de Stenio Gardel, conta a trajetória de Raimundo, um jovem nordestino, gay e apaixonado pelo amor da sua adolescência. Com a brilhante direção de Daniel Herz, o grupo Cia. dos Atores de Laura, com atores do grupo original (Ana Paula Secco, Charles Fricks, Leandro Castilho, Paulo Hamilton e Verônica Reis) e a atriz convidada Valéria Barcellos, que, com as técnicas do teatro armorial, conseguem equilibrar de forma perfeita a poesia do texto com os movimentos de corpo, pois se revezam em vários papéis, inclusive o do protagonista;

A casa é sua: a extraordinária Natasha Corbelino fez 10 sessões de “Uma peça cansada”, sempre aos domingos, na sala da sua casa, um monólogo que é pura poesia. Ela oferece água, faz exercício de integração e, a partir daí, Natasha funciona como um ímã para o conjunto de 10, 12 pessoas, pois sua atuação é arrebatadora — não há como tirar os olhos;

Menos é muito mais: sem qualquer patrocínio, Edio Nunes levou aos palcos “Professor Samba – Uma homenagem a Ismael Silva (o criador das escolas de samba). Ao entrar na arena, já se percebe uma ótima reconstituição minimalista dos botequins, o verdadeiro berço da roda de samba. E aí, chegam os três atores: Édio Nunes, Milton Filho e Jorge Maia, transmutados em malandros imaginários atemporais pelos criativos figurinos de Wanderley Gomes, também autor do cenário;

O meu lindo é barato: os figurinos de Karen Brusttolin em “Vital”, o musical dos Paralamas do Sucesso, traçam um painel de todas as épocas do grupo, sobretudo os anos 80, 90 e 2000. Os figurinos de Karen, que se atém mais aos fatos emocionais e à narrativa do que à cronologia, são o resultado de meticuloso processo de transformar materiais antigos ou descartados em novos produtos de alta qualidade e valor;

Toca Raul: a melhor atuação do ano é a de Bruce Gomlevsky em “Raul Seixas, o musical”, que foge da caricatura fácil de Raulzito (como Raul Seixas era chamado). O que vemos é uma performance emocionada, com levíssima prosódia da Bahia ao trazer os pensamentos, as divagações, a produção de um homem angustiado desde sempre;

Há que destacar: em “O pagador de promessas”, peça de Dias Gomes, com Diogo Vilela no papel de Zé do Burro, Patrícia Pinho faz Rosa, mulher do protagonista com um viés de aproximação intensa com uma mulher que, apesar de viver no regime do patriarcado, consegue falar o que importa;

Ele, sempre Ele: a direção de Gerald Thomas na peça “Traidor”, que, juntamente com Marco Nanini, constrói um espetáculo meticulosamente construído para mostrar a base do que é teatro, como arte performática;
Brasil de verdade: “Brasil, mostra a tua casa”, com texto do premiado Rogério Corrêa e direção de Isaac Bernat, explora o final dos anos 1980, período de redemocratização no Brasil e volta às eleições diretas para presidente. A narrativa discute a escolha cíclica dos eleitores por políticos ‘salvadores da pátria’, como Jânio e Collor, fazendo um paralelo com os tempos atuais em tom crítico e com humor irônico. O ótimo elenco é formado por Letícia Isnard, Ângela Rebello, Alexandre Galindo e Thadeu Matos.
